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Milton Nascimento conta histórias ao falar do novo disco

'... E a Gente Sonhando' conta com a participação de jovens instrumentistas da cidade mineira de Três Pontas

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

A certidão deve estar equivocada. Se tivesse vindo ao mundo mesmo em 26 de outubro de 1942, Milton Nascimento teria traços fortes no canto dos olhos, fios brancos na raiz das tranças e bufaria de tédio depois da 27.ª pergunta do repórter que vem não se sabe de onde tirar-lhe a paz em seu refúgio no alto de um condomínio na Barra da Tijuca. Um homem de 70 anos raramente diria algo do tipo ‘quero começar a ir mais aonde o povo está’.

 

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A certidão está certa, só não confere com a jovialidade que Milton credita a seu novo disco E a Gente Sonhando, que ainda quase lhe tira lágrimas quando gira no aparelho. Ao ouvi-lo, é como se tudo viesse à tona de novo, os meninos músicos que achou pelos becos de Três Pontas a fim de gravar com eles e provar ao mundo que naquelas terras ali tem mais do que seus próprios tons geniais. Ao final da conversa com o C2+Música, não parece cansado. "Gosto assim, quando posso falar de tudo."

 

 

Seus discos nem sempre são fáceis, muitas vezes você tem um pé no jazz que pode torná-lo menos popular. Se não tomar cuidado você fica difícil?

Eu nunca penso em fazer assim ou assado. Sempre me perguntaram que tipo de música eu faço, nunca soube explicar. Certa vez fui convidado para um festival de jazz na Dinamarca. Quando cheguei lá, o cartaz da noite dizia: ‘Miles Davies - jazz’, ‘Fulano de tal - rithym and blues’, ‘Milton Nascimento - Milton’. Foi a melhor definição.

 

Você é tratado melhor lá fora?

Sinto que o brasileiro está sentido mais forte as coisas que faço. A vida toda eu ouvi que a minha música não era entendida pelo povo. Agora estou fazendo mais shows para um pessoal que não tem dinheiro. E de repente aquele pessoal todo canta comigo. E aí? Cadê a música que ninguém entende?

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E por que somente agora as pessoas estariam mais sensíveis ao que você faz?

Estou indo mais aonde realmente o povo está. No rádio não toco tanto. Televisão faço de vez em quando.

 

Disco não dá mais dinheiro...

O negócio é show. E eu sempre quis viver desse jeito.

 

A história tem lá a Bossa Nova, a Jovem Guarda, a Tropicália, movimentos fortes, que mudaram costumes. Mas o Clube da Esquina, que você criou com músicos mineiros nos anos 60, não aparece assim. Por quê?

Sempre que vou aos lugares sinto isso, que o Clube da Esquina é tratado como uma outra coisa. Mas quando o pessoal começou a usar instrumentos elétricos, guitarras, roupas coloridas, eu tocava com o Som Imaginário, que derrubava teatros.

 

Para a história, foi a Tropicália que fez isso.

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A gente já estava antes nessa história. Caetano Veloso diz que o Gil sempre falou para ele prestar atenção em mim, mas que ele, Caetano, nunca deu muita bola até o dia em que me conheceu de perto.

 

A música que dá nome ao disco novo, E a Gente Sonhando, foi feita quando você tinha 19 anos e trabalhava como datilógrafo. Fez muitas músicas assim?

Eu era um ótimo datilógrafo da Central Elétrica de Furnas, era mesmo. Eu fiz Canção do Sal, Maria Minha Fé, E a Gente Sonhando. Fiz umas cinco assim.

 

E quando não fazia música fazia o quê?

(Risos) Ah, eu era empregado, nem entendia algumas coisas que datilografava, coisas de luz, eu nem fazia ideia do que era.

 

Música também é um perigo, não? Essa viagem de compositor nunca foi angustiante pra você?

Sofrimento e música já estiveram juntos. Uma vez eu tive vontade de parar com tudo e marquei o dia para isso, sem avisar ninguém. O último show seria o que fiz com a Orquestra Sinfônica de São Paulo e dois corais infantis. Foi muito sofrido, e todos ali no palco sentiram que tinha uma coisa acontecendo. Quando comecei a cantar Travessia, um dos meninos do coral se virou para mim. Todos virados para o público e ele virado pra mim. Aí fui cantando e falei ‘não vou olhar para esse menino’. Cantei a música toda e quando acabou foi uma loucura, as pessoas jogando paletós para cima. Chamei o menino ao camarim e falei: você sabe o que você fez comigo hoje? Ele só tinha 11 anos. Falei pra ele que não podia ficar sem ele na minha vida. Queria tratá-lo como meu filho. Ele virou e disse: "A coisa que eu mais queria é que você fosse meu pai." Certa vez, contei a uma amiga que estava com saudades dele e ela disse para eu chamá-lo. Mas o garoto tinha 11 anos e iam dizer aquelas coisas que você sabe.

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Quais coisas?

Ah, um cara mais velho com um menino de 11 anos? Vão falar de tudo. Minha amiga disse para eu tentar e, hoje, eu sou o segundo pai dele. A família dele teve muita confiança em mim.

 

E aquilo que você temia? Ninguém falou nada?

Não, graças a Deus. E também não teria como. Você sabe quantos afilhados eu tenho?

 

Não.

116.

 

Registrados em cartório?

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Sim, batismo, igreja, tudo. A de número 116 é uma menina que nasceu há pouco tempo, filha de um rapaz que trabalha comigo e que me chama de pai.

 

E você sai assim, adotando todo mundo?

Saio.

 

Seria porque você é um filho adotivo também?

Sim, e engraçado que minha mãe adotiva sempre sentiu tudo o que acontecia comigo. Houve uma época em que eu estava bebendo muito. Tinha motivo para isso, mas eu não podia falar pra ninguém. Na época, o pessoal da ditadura queria acabar comigo, e eles matariam qualquer um que fosse meu confidente sobre qualquer coisa. Essa era a maneira que castigavam as pessoas. Então, nunca falei nada. E continuei bebendo. Até que um dia olhei um pessoal bonito, colorido, voltando da praia, e senti que eu não estava vivendo mais. Aí me tranquei no quarto e fiquei lá, sem sair, sem me mexer, sem comer. No quinto dia percebi que não estava tremendo. Saí do quarto e fui para Três Pontas ver minha mãe, que não sabia de nada. Quando cheguei lá, ela me levou pelo quintal até uma laranjeira que eu tinha plantado quando criança mas que nunca tinha dado laranja. Tinha duas laranjas na árvore e eu disse ‘ué, deu laranja’. E ela respondeu: "Sim, elas esperaram você parar de beber."

 

E o segredo que você não podia contar na época?

(Milton faz uma longa pausa e balança a cabeça). Ah não, não dá.

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Mesmo tanto tempo depois?

(Silêncio). Desculpa, essa não vai dar.

 

Que música você gostaria de ter feito?

Quando ouvi Paul McCartney e Stevie Wonder cantando Ebony and Ivory, fiquei desesperado, puta que o pariu, por que eu não pensei nisso antes?

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