Miles Davis e o som da selva de Manhattan

CDs com sobras de estúdio e gravações ao vivo reafirmam o gênio do trompetista

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Por Agencia Estado
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Foi em uma pequena casa noturna de subsolo, em São Francisco. A sala estava lotada e a platéia, na sua maioria composta de negros, aguardava cheia de expectativa. Era 1975 e Miles Davis entrou no palco vestindo um casaco de couro enfeitado com fitas e uma camisa adornada com lantejoulas. Imensos óculos de sol escondiam seus olhos. A banda o seguiu e os músicos assumiram seus lugares - os guitarristas Reggie Lucas e Pete Cosey o saxofonista Sonny Fortune, o baixista Michael Henderson, Al Foster na bateria e Mtume Heath na percussão. Juntos, eles engrenaram um ritmo monocórdio, pesado, que continuou implacavelmente até que Davis fez sua primeira manifestação musical da noite, indo até o órgão para produzir um ruído medonho e dissonante, um som que trespassou o clube, enquanto ele olhava fixamente para a platéia, que logo se mostrou inquieta. Durante a hora seguinte, a música pouco mudou. Davis, intermitentemente, tocava o órgão; o público passou a gritar e a se manifestar e ele começou a tirar o paletó, lentamente. Havia alguns anos, despir o casaco vinha sendo um ritual nas apresentações de Miles Davis, mas, dessa vez, em São Francisco, o ritual atingiu proporções catastróficas. Enquanto o público fazia zombarias, os enfeites do casaco ficaram presos nas lantejoulas da camisa do trompetista. Quatro auxiliares acorreram para desvencilhá-lo, enquanto a banda tocava a mesma música do começo. Já se haviam passado mais de duas horas e Davis não tinha tocado trompete nem uma vez. Uma pausa - No verão de 1975, depois de sete anos de inovação prolífica, mudanças constantes e revolução musical, Miles Davis finalmente fez uma pausa. Um grave acidente automobilístico, uma úlcera homorrágica, juntas dos quadris esfaceladas e o uso desenfreado de drogas tinham cobrado seu preço. No fim daquele ano, ele desapareceria da música, em uma reclusão crepuscular da qual praticamente nunca mais saiu. Sua aposentadoria determinaria o fim de uma época. O período de 1968 a 1974 marca o último ciclo criativo de Miles Davis. Os discos que fez nesse período desafiam qualquer classificação, debocham das convenções e põem à prova os próprios limites da música. Às vezes agressivamente feia, outras vezes etérea, melancólica e lúgubre, é a menos compreendida e mais criticada - assim como a mais influente e excitante - de todas as fases de Davis. Após anos de descaso, o lançamento pela Sony, em CD, dos álbuns ao vivo Dark Magnus, Black Beauty e o premiado Bitches Brew (apresentado em uma caixa com quatro CDs) trouxe essa música de volta ao centro das atenções. Na fusão de elementos africanos, asiáticos, funk, rock e vanguarda, não há nada semelhante. Um crítico descreveu uma inspirada apresentação de 1974. Segundo ele, Davis levou seu grupo através de uma "densa floresta tropical eletrônica". Segue: "Sentindo uma clareira, Davis estende a mão, fazendo um sinal, e o grupo pára, imóvel, enquanto o sax soprano ou a guitarra elétrica ou mesmo o trompete do líder avança, sozinho, relatando o que vê." Porém, Dave Liebman, saxofonista de Davis de 1972 a 1974, lembra que, muitas vezes, nem os músicos nem a platéia sabiam o que fazer do que estavam ouvindo. "Não é que as pessoas ficassem de pé, batendo palmas e aplaudindo", relata. "Elas nem mesmo aplaudiam. Era um choque, era muito desconcertante, mas ele simplesmente continuava com aquilo. E foi uma lição admirável para mim ver alguém fazer exatamente o que queria, independentemente da reação das pessoas." O Miles Davis da década de 70 surgiu de fato com Filles de Kilimanjaro, seu segundo lançamento de 1968. A capa mostrava sua nova mulher, Betty Mabry, que apresentou Davis a Jimi Hendrix. Embora a influência de Hendrix ainda estivesse por vir à tona, Filles... marcou uma nova direção para Davis, que aderiu totalmente à fusão em In a Silent Way e no extraordinário Bitches Brew, o disco que dividiu o público de Davis entre tradicionalistas do jazz, horrorizados, e um novo público, oriundo da contracultura e do rock. Bitches Brew, gravado em três dias, em agosto de 1969, e cuidadosamente editado por Davis e por seu produtor de longa data, Teo Macero, foi seu salto mais radical e controvertido. Foi um disco que abriu caminho para muito do que se seguiria. A caixa Complete Bitches Brew Sessions surgiu no ano passado e, agora, a Sony lançou os últimos três álbuns da década de 70 - On the Corner, Big Fun e Get Up With It. Remasterizados e com minuciosas notas dos músicos Dave Liebman, John McLaughlin, Bernie Mauphin e do produtor da série, Bob Beldin, esses extraordinários álbuns mapeiam a jornada musical da Davis para longe da tecitura bizantina do seu celebrado quinteto da década de 60 - o último grupo de jazz clássico que ele lideraria - para as "sinfonias da selva de Manhattan" da banda de 1973 a 1975: fortemente percussiva, dark, plena de ousadias eletrônicas que continuam a desafiar definições, mais de 25 anos após o lançamento. Desespero e raiva - O mais controvertido e influente de todos esses discos talvez seja On the Corner, de 1972. Foi o disco que fez os críticos de jazz chorarem de desespero e raiva. Tendo como base elementos percussivos repetitivos e multifacetados, sob loops eletrônicos e efervescentes trechos de solo extraídos de uma imensa banda de até 16 músicos, foi inspirado em Sly Stone, Stockhausen, suítes de violoncelo de Bach e em James Brown. Davis trabalhou com o compositor britânico Paul Buckminster de forma muito parecida com a de seu trabalho com o arranjador Gil Evans. Inventou um sistema de ritmos e pulsos sobre os quais os músicos solam individualmente, embora nunca se libertem completamente do corpo do conjunto. Instrumentos eletrônicos, teclados, instrumentos indianos, trompas, trumpete eletrificado: o resultado é uma negra e densa floresta sonora elétrica, cheia de agudos, às vezes parecendo soturna música ambiente. Batidas que fazem lembrar ataques de pânico pontuam os loops alucinantes que confundem o ouvinte, ao mesmo tempo em que o embalam em uma batida funk descarnada. Ainda é um som desafiador, complexo -- mesmo depois do hip-hop, rap, acid jazz, jungle e techno. Em 1972, deve ter soado como uma invasão alienígena. Mesmo agora, os músicos da moda têm algum trabalho para alcançar o funk de On the Corner. O que era aquilo? - Big Fun, apesar de lançado em 1974, consiste em grande parte de músicas gravadas logo depois de Bitches Brew. A reedição de The Legacy inclui quatro faixas-bônus, entre elas a bela Recollections, de Joe Zawinul. Aqui e em Lonely Fire, ambas num estilo meio zen, formas musicais abertas e soltas se misturam e se confundem sobre uma base narcótica que é, mais uma vez, diferente de tudo o que você já ouviu. "Saímos do estúdio coçando a cabeça, nos perguntando o que era aquilo", lembra Herbie Hancock. "Não tínhamos a menor idéia sobre se era bom ou ruim. Era apenas diferente." A batida dominante de Great Expectations, suas pitadas de percussão, cítara, teclados múltiplos e entradas de trompete soando como voz de muezim são remanescentes de Bitches Brew, mas num clima menos denso, mais natural, mais à vontade. A execução acelerada de Ife, um monumental standard nos concertos de meados da década de 70, irrompe em um solo extraordinariamente melancólico, quase doloroso de Davis, sobre uma camada de notas soltas da guitarra e dos teclados. E, misturando o estridente com o sublime, Go Ahead John apresenta o som gritante de guitarra de John McLaughlin confundindo-se com um solo multifacetado de Davis, que é tão atemporal quanto qualquer coisa gravada por ele nas décadas de 50 e 60. Mas foi em Get Up with It, de 1974, que Davis levou sua banda para o território mais profundo e escuro de todos. É o único documento de estúdio do grupo entre 1973 e 1975 e, embora não tenha sido totalmente bem-sucedido, é sempre fascinante. Maiysha abre com uma batida afro-latina de mau gosto, suplantada pelo martelar do órgão de Davis, produzindo um trecho em estilo punk profundamente inquietante e que se desdobra num clima surpreendentemente funky, encimado por solos distorcidos do trumpete e da guitarra. Rated X é uma outra contravenção sonora, com a banda incluindo uma cítara elétrica, piano e guitarra golpeada impiedosamente por Davis e dando ao órgão um pouco mais de espaço. Mas o disco é dominado por um réquiem monumental, em memória de Duke Ellington, He Loved Him MadlyM, e pelo épico em três partes Calypso Frelimo. He Loved Him Madly é um lamento quase imóvel, de grande beleza, um tipo de Book of Shadows auditivo. Sobre a cama desenhada pelo órgão e pela guitarra hipnótica surgem a flauta etérea de Dave Liebman e dois longos, extraordinariamente lamentosos e belos solos de Davis. Aqui, a música é diferente de tudo o que ele ou qualquer outra pessoa tenha gravado. Desde Bitches Brew até sua aposentadoria artística, em 1975, sempre que Davis convocava uma sessão de gravação, seu produtor, Teo Macero, gravava tudo em fita. Há dezenas, possivelmente centenas de horas de material de estúdio que permanecem inéditas. A Sony tem planos para mais duas caixas, com as apresentações de In a Silent Way e outras sessões da década de 70. Macero afirma ter trabalhado uma coleção de dez CDs de material de estúdio inédito. Se esse material algum dia virá à luz ainda é uma incógnita, mas, indiscutivelmente, existe um público contemporâneo que deseja tê-lo por inteiro. Novas texturas - O papel de Macero na criação dessa e de outras gravações da década de 70 não pode ser subestimado e seu trabalho é uma cópia heliográfica do que estava por vir. Ele costumava pegar as sessões de estúdio em estado cru e editá-las, sempre num trabalho árduo. "Eu costumava levá-las de volta para o estúdio e trabalhar nelas", lembra ele. "E talvez, então, usar parte disso e criar uma textura inteiramente diferente." Bitches Brew e On the Corner são fruto de edições que transformam jam sessions aleatórias em um todo coeso. Joe Zawinul lembra-se de ter deixado uma sessão de Bitches Brew dizendo a Davis. "Não gosto desse troço de jeito nenhum." Adiante, lembra: "Muito tempo depois, fui à gravadora e a moça de lá estava ouvindo essa incrível música no seu escritório; e eu perguntei: `Que diabo é isto?´ Ela respondeu: `O que você quer dizer com que diabo é isto? Estes são você, Miles, John e todo mundo, em Bitches Brew.´" Sobre sua experiência na banda, o saxofonista Dave Liebman escreveu: "Dizer que foi preciso algum tempo para entender o que estava acontecendo seria pouco. Nunca havia música escrita, raramente se ouvia uma palavra de Miles sobre o que tocar e houve apenas uns poucos ensaios, eventuais, durante os 18 meses que passei com ele." Foi somente depois de ouvir as fitas com as gravações que Leibman percebeu que havia um padrão permeando o caos do palco. "Foi uma revelação", recorda-se ele. Embora com métodos profundamente erráticos, Davis ensinou a sua banda algo mais fundamental do que notas e partituras. Ensinou a atitude, a atmosfera, a forma de pensar, sentir e questionar que estavam refletidas na sua música. As sessões de estúdio, lembra Leibman, eram diferentes de qualquer outra de que houvesse participado, antes ou depois de Davis. "Não havia aquecimento, ensaios, passagem de som ou definição dos takes. As coisas começavam lentamente, com a banda se encaixando, esperando que ele apontasse para você, para que fizesse um solo. Os sentimentos eram sempre intensos. Depois, antes que você pudesse se dar conta, Miles tinha ido embora, com uma fita cassete na mão."

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