Um piano melhor teria dado outro rendimento ao recital de Mikhail Rúdy, no domingo dia 7, no Festival de Campos. Se, em algumas seqüências, parecia que ele estava esbarrando nas notas, é porque, na realidade, certas teclas não respondiam ao dedilhado e, às vezes, certas texturas ficavam levemente empasteladas. Ainda assim, foi admirável o resultado obtido com um programa pesado, de peças de autores russos.A duas peças orquestrais transcritas - três trechos do Romeu e Julieta de Prókofiev e o balé Petrúshka de Stravinski - respondia uma peça originalmente concebida para piano, em que o instrumento é usado de forma orquestral: os Quadros de Uma Exposição de Mússorgski. E entre eles, ponto alto do programa, quatro estudos de Scriábin, sobretudo os op. 42 n.º 2 e 5, o primeiro desenrolando uma voluptuosa tapeçaria melódica, o segundo uma das páginas mais grandiosas de Scriábin, a que Rúdy deu uma interpretação impecável.Um pouco fria no início do concerto, a execução foi-se tornando mais envolvente, à medida que avançavam os trechos de Romeu e Julieta, transcritos pelo próprio Prokófiev. Em Julieta jovem já se sentia uma vibração maior, que se soltou plenamente em Montecchio e Capuleti, cuja beleza melódica e refinamento de escrita faz dessas adaptações páginas preciosas de repertório pianístico, com valor em si mesmas.É muito cuidada a transcrição de Petrushka realizada por Rúdy, e foi um tour de force a sua execução, sobretudo em companhia de outras composições que exigem muito do instrumentista. Expandindo o trabalho do próprio Stravinski que, em 1921, transcreveu três cenas para Arthur Rubinstein, Rúdy transporta para o teclado os quatro quadros do balé. Naturalmente, nem todos os episódios obtém resultado igual. Mas, em seus momentos melhores - em especial os que se referem à ambientação da feira, os sons de realejo, amúsica de carroussel - a transcrição revela, por parte de seu autor, domínio muito flexível das possibilidades harmônicas e rítmicas do piano.Trechos como Toques de Magia (cena 1) ou A Morte de Petrushka (cena 4) são de efetiva qualidade enquanto recriação no transporte da peça de um meio expressivo para outro. Foi muito bem pensada a interpretação dos Quadros de Uma Exposição, seja nos diversos climas dados ao tema do "passeio", que unifica a peça, sugerindo o trajeto do visitante de uma tela à outra, seja no tratamento diferenciado a cada um dos quadros: a nostalgia do "Velho castelo", o senso de humor da "Dança dos pintinhos", a ironia politicamente incorreta no retrato dos dois judeus, o rico e o outro; o tom lúgubre das "Catacumbas".Foi empolgante a forma como Rúdy fez a transição do quadro que mostra a cabana da feiticeira Baba Yaga para o painel final, A Grande Porta de Kiev. O tema litúrgico ortodoxo e a imitação do som do carrilhão, com que constrói esse belo painel patriótico deu ao recital um encerramento de grande entusiasmo. Rudy é um pianista generoso, que atende sem hesitar às solicitações do aplauso de seu público: foram cinco os extras - Chopin e Debussy - com que voltou ao palco. Depois do tom épico e grandioso do piano-orquestra, mostrou a sua vertente lírica e do virtuosismo leve e elegante, em peças do mais puro e delicado pianismo.