Matthew Whitaker, 17 anos, começa a despontar sob a aura de Stevie Wonder

Pianista norte-americano surge com impacto de revelação no Mimo Festival de Amarante e descola-se das referências mais óbvias quando toca 'Mas que Nada', de Jorge Benjor

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Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
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AMARANTE, Portugal — Foi em um táxi de Nova York que Matthew Whitaker as assombrou pela primeira vez. A produtora Lu Araujo e sua gerente geral Malu Allen faziam um trajeto por Manhattan com a cabeça em nomes para a próxima Mimo Festival de Portugal quando ele veio pela TV do carro. Uma vinheta mostrava Matthew em um talk show e um trecho com a imagem espantosa do menino cego de 17 anos demolindo as teclas de seu piano e lembrando assustadoramente de Stevie Wonder. "Olha esse cara!".

As produtoras foram atrás e sentiram como se tocassem primeiro na pedra preciosa. Os pais de Matthew se mostraram preocupados com a viagem. Além de cego, o pianista era menor de idade e poucas vezes havia saído de territórios seguros de sua terra natal, o Teatro Apolo, no Harlem. Com os pais produtores devidamente na lista dos convidados pelo festival, além do baixista e do baterista que os acompanham, Matthew embarcou para Amarante, uma cidade com pouco mais de 11 mil habitantes e origens na Idade da Pedra a uma hora do Porto, ao Norte de Portugal. Mesmo quando ainda não tinha suas outras atrações fechadas, a Mimo tinha seu maior frescor anunciado com orgulho pelo próprio Matthew. Assim que surgiu no palco do Museu Amadeo de Sousa-Cardoso diante da banqueta colocada estrategicamente entre um piano e um teclado Hammond, o garoto sorriu e se dirigiu à plateia com a mesma frase que havia dito para falar em um workshop horas antes: "Olá, eu sou Matthew Whitaker e tenho 17 anos."

Matthew Whitaker Foto: Mimo Festival

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A cegueira de Matthew se deu em um nascimento complicado e prematuro em três meses, com 50% de chances de sobrevivência. O piano de casa se tornou uma diversão e um portal pelo qual descobria o mundo em que queria viver. Quando os pais perceberam, Matthew já estava do outro lado. "Eu toquei Twinkle, Twinkle Little Star no teclado que havia recebido de presente aos três anos de idade", recorda. Suas aulas começaram aos 5 em uma escola para cegos de nova York e, no Harlem, passou a aprender contrabaixo, bateria, clarinete e percussão. Seu crescimento artístico se dá, a exemplos de histórias na música negra norte-americana, três vezes mais rápido do que sua maturidade biológica. Matthew no palco e diante de seus músicos, é um garoto ainda nervoso quando não está flutuando em suas teclas.

O show em Amarante foi uma apresentação também precoce. Matthew pode ser tudo se conseguir firmar sua personalidade artística descolando-se do peso da aura de Stevie Wonder e Ray Charles, que nasce com ele, ou limitar-se pelo caminho contentando-se com o sucesso que já é certo apenas por lembrar as duas maiores sínteses da música norte americana. Charles Bradley morreu satisfeito com o status de James Brown cover. Matthew foi generoso com a plateia tocando temas conhecidos dos anos 70, como September, do Earth, Wind and Fire. É essencialmente um pianista de blues, aparentemente arrebatado pela linhagem de Pinetop Perkins e Johnny Johnson, e o Hammond está a seu lado para comprovar, mas ele gosta também de funkear com comandos de entradas de braços para seus músicos. O que ele fez com Mas Que Nada, de Jorge Ben, foi uma recriação rara, com improvisos de se levantar das cadeiras e uma apropriação que só os devotos conseguem. Matthew Whitaker é também um devoto de Jorge Ben, e é por aí que ele pode começar a nascer.

Seu primeiro disco saiu em 2017 e se chama Outta the Box. Mas que Nada está lá em outro formato daquele que mostrou no show. Há uma percussão afro no início e uma clave latina, e logo seu piano é recortado por solos de saxofone. Um trabalhão para fazer o que queria com a música brasileira. Matt's Blues o apresenta em seu lugar mais confortável, o piano blues das big bands, e Flow o mostra lírico, com as influências de um piano clássico que sempre é mencionado em meio a seus improvisos.

O festival Mimo em Amarante segue até o domingo, 22, com músicos do mundo. A noite de abertura teve a guitarrista portuguesa Marta Pereira da Costa, o coletivo português Dead Combo, os brasileiros do Baiana System, o grupo de Moçambique Timbila Muzimba e a rainha do carimbó, a paraense Dona Onete. Para este sábado, estão previstos a cantora da Mauritânia Noura Mint Seymali e o brasileiro Otto. Uma das atrações mais esperadas chega no domingo, para encerrar o palco principal. Uma formação estelar chamada Hudson capitaneada pelo baterista JackDeJohnette, com John Scofield na guitarra, John Medeski ao piano e Scott Colley no baixo.

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