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Mart´nália, o nome entre o samba e o pop

Filha de Martinho da Vila ocupa um lugar singular na cena carioca. Menino do Rio é seu quinto disco

Por Agencia Estado
Atualização:

Mart?nália ocupa um lugar singular na cena carioca. Sendo filha de quem é (Martinho da Vila, caso você tenha passado os últimos 40 anos numa fazenda do deputado Inocêncio de Oliveira), ela transita com desenvoltura pelo samba. Tendo a idade que tem (os mesmos 40 anos dos parênteses acima), ela não passou incólume pela difusão no planeta da música negra americana, do qual o rock é apenas um dos derivados. Como as duas turmas mal se falam, ela vem se gabaritando, disco após disco, tanto a ser a porta-voz de saudável mistureba quanto alvo preferencial de incompreensões cruzadas. Escolados neste tipo de falso dilema, os filhos tropicalistas de Dona Canô, de Santo Amaro da Purificação, na Bahia, têm sido fundamentais para o desabrochar relativamente tardio de Mart?nália como cantora comme il faut. Primeiro, em 2002, Caetano Veloso dirigiu - e Celso Fonseca produziu e arranjou - Pé do Meu Samba, lançado pelo selo Natasha. Agora, é Maria Bethânia quem dirige e produz - e seu fiel maestro Jaime Alem arranja - Menino do Rio, lançado pelo selo Quitanda, o caprichado cantinho da irmã de Caetano no Biscoito Fino. Entre um e outro álbum de estúdio, Mart?nália gravou Ao Vivo. Aqui em Menino do Rio, porém, a única coisa ruim é exatamente a versão para a já clássica composição de Caetano, sugerida a Mart?nália por Bethânia. Ela vem costurada por uma cuíca a Estácio, Holly Estácio, de Luiz Melodia. Dá para entender o conceito: mar e morro, Zona Sul e Zona Norte, pop e samba. O resultado, contudo, é decepcionante. Mesmo quando a cantora se apruma, na porção Melodia, a interpretação soa falsa, artificial, presa, sem a espontaneidade que é uma das suas marcas registradas, no palco e fora dele. Todo o resto do CD, felizmente, é fiel ao espírito sapeca da filha de Martinho da Vila. Bethânia e Alem optaram por deixar Mart?nália o mais solta possível no estúdio, com poucos instrumentos a dividir os canais com sua voz, voz malemolente como a do pai e suave como não são as de muitas de suas tonitruantes colegas de geração (duas delas, aliás, Ana Carolina e Zélia Duncan são compositoras em Menino do Rio). Na faixa São Sebastião, de Totonho Villeroy, por exemplo, só os próprios Alem e Bethânia que estão no estúdio com a intérprete: ele toca o sempre elegante violão, ela lê trechos do poema Cartão-Postal, de Vinicius de Moraes. Este hino ao Rio de Janeiro é realçado, em sua sinceridade, por uma característica pronunciada de Mart?nália: o esse transformado em xis. O doce chiado já surge no primeiríssimo verso de todo o disco: ?O samba corre em minhas ?veiax? (de Pra Mart?nália, de Fred Camacho e Jorge Agrião). Nem Jorge Ben soou tão carioca. Este samba de auto-exaltação - e aos bambas que a fizeram merecida, Candeia, Paulinho da Viola, D. Ivone Lara e papai, claro - faz pendant, no CD, com a derradeira faixa, o sambão exaltação espiritual Origem da Felicidade, de Celso Fonseca. A apoteose conta com a participação da bateria da Unidos de Vila Isabel. Outros excelentes sambas evoluem no desfile. Como Casa 1 da Vila, de Monsueto e Flora Matos, dos sábios versos ?eu sinto sede/ eu sinto fome/ mas mulher de amigo meu/ pra mim é homem?. Ou como os sambas-de-roda Nas Águas de Amaralina (de Martinho da Vila e Nelson Ruffino) e Casa da Minha Comadre (de Roque Ferreira e Jorge Agrião). Mart?nália não tem como e nem teria por que renegar sua descendência genética e artística. Ela não é, todavia, uma cultora subserviente das ortodoxias estabelecidas pelos talibambas - como foram tão bem batizados por Paulo Roberto Pires aqueles jovens músicos e fãs que simultaneamente renovaram a Lapa carioca e a transformaram num bastião do conservadorismo musical. Mart?nália já foi até admoestada numa roda de samba do bairro por, supostamente, estar tocando seu pandeiro muito alto. A Mart?nália filha de bamba não se fecha no samba: tem um ouvido também apurado tanto para levadas africanas ancestrais quanto para o pop, o blues, o soul. Como classificar, por exemplo, uma gracinha chamada Pretinhosidade, composição dela mesma e de Mombaça? Uma balada afro-pop-samba-soul-latina? Afinal, o arranjo tem balde, cajon, congas, tamborins, baixo elétrico e violões: comum, de aço, de 12 cordas. Ou como entender a erótica Soneto do Teu Corpo, de Moska e de Leoni, dos versos ?vivo em teus bosques/ bebo entre teus rios/ entre teus montes/ vales escondidos?? Os dois autores, aliás, são crias dos anos 80 que não se deixaram aprisionar na tola e paralisante nostalgia que hoje cerca a década. Talvez seja por isso que a cabeça feita e aberta de Mart?nália se identifique com eles, construtores da ponte a partir do outro lado do Rio.

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