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Mais do que sofrências, Marília Mendonça deixou uma libertação

Ao escancarar sua vida no palco, cantora desafiou o machismo urbano e trouxe consigo a vida de brasileiras que jamais haviam sido representadas por uma música popular em uma escala tão grande

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Marília Mendonça pode levar um tempo para ser entendida como algo maior do que a cantora que chegou às multidões de jovens consumidores da música sertaneja de sofrência. A tal sofrência, com ela, deixou de ser um estado de espírito para se tornar um gênero de massa, mas isso também seria reduzi-la. Ali havia mais do que um ponto importante na sequência temporal da modernização iniciada por Chitãozinho & Xororó nos anos 70, mantida por Zezé Di Camargo & Luciano nos 80 e 90 e, revista em sua escola de voz e em sua temática, muito mais sexualizada, pelas duplas que trouxeram o único gênero que não conhece crises para os anos 2000. Marília, para o bem e para o mal, fazia parte de uma transformação que o meio sertanejo demorou para entender e o meio não sertanejo sempre esteve pronto para alvejar.

Marilia, em show recente deSãoJosédos Campos Foto: Will Dias/Futura Press

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Sua vida artística concentrada em dez anos, de 2011 a 2021, serviu, para além de turbinar hits estrondosos como Troca de Calçada, Me Ame Mais ou Esqueça-me se For Capaz, a sedimentar um conquista dos tempos ao mudar o eixo e projetar-se sobre um narrador homem de histórias machistas que já não era mais aceitável. Marília, transferindo para o canto feminino a mesma tradição da impostação exuberante do masculino, ou seja, falando de igual para igual, na cultura sertaneja, passou a dizer não. Não à objetificação histórica que a música brasileira dos sertões faz à mulher, não ao cancelamento do corpo feminino fora dos padrões, não à traição pela traição. Seu último trabalho, Patroas 35%, feito com Maiara & Maraisa, fala muito sobre isso. “É que eu vivo com alguém / Que não me dá motivos pra ficar com mais ninguém / Se eu pudesse ter dois corações, teria / Mas me cancela da sua vida / Porque em sã consciência eu não conseguiria.”

Ao mesmo tempo em que essa mulher apaixonada ainda está frágil, lá vem sua força mais visível em Você Não Manda em Mim. “Você não manda em mim / Eu sei aonde devo ir / Eu sei o que eu posso vestir / Se tudo que eu faço te incomoda / Você sabe o caminho da porta / Se um dia eu mudar pra te agradar / Eu juro que eu troco meu nome / Quer me ensinar a ser mulher / Primeiro aprende a ser homem.” Marília bloqueou homens abusivos em Troca de Calçada, desmascarou namorados falsos em Infiel e reconheceu as fraquezas de um amor confuso em Impasse. Ao escancarar sua vida, trouxe consigo a vida de brasileiras que jamais haviam sido representadas por uma música popular em uma escala tão grande. O que ela deixa não é a sofrência, mas a libertação.  

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