Mahler, um profeta para todos os tempos

CDs reafirmam atualidade do compositor que mergulhou nos dilemas do homem

PUBLICIDADE

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
Atualização:

Não deve ter sido fácil viver na época de Gustav Mahler. Em 1908, recluso na cabana à beira do lago de sua propriedade em Toblach, o compositor escrevia a seu amigo Bruno Walter: "Se quero recobrar o controle sobre mim mesmo, preciso me entregar novamente aos horrores da solidão. Perdi toda clareza e tranquilidade. E agora que estou perante o nada, no fim da vida me descubro um iniciante, devendo uma vez mais aprender a caminhar." Mahler (1860-1911) buscou definir em sua obra um conceito de indivíduo e de relação com o mundo, isso durante a passagem do século 19 para o 20, período de intensas transformações sociais, políticas e no campo das ideias. Pareceu familiar? Talvez não seja por acaso que sua obra, cem anos depois, esteja tão em voga, parada obrigatória na temporada das principais orquestras de todo o mundo, além de constantemente revisitada em gravações. Viver em nossa época, afinal, também não é tarefa das mais fáceis.

 

Ouça:

PUBLICIDADE

 

Na semana passada, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo anunciou o projeto de interpretar, ao longo das duas próximas temporadas, todas as dez sinfonias, mais os ciclos de canções, do compositor nascido na Boêmia. Ao mesmo tempo, A Canção da Terra, uma de suas últimas obras - e de certa forma a síntese dos temas que mais o preocuparam ao longo de toda a carreira -, acaba de ganhar duas novas gravações. Uma delas vem de fora, com a Sinfônica de Montreal regida por Kent Nagano (Sony) e solos de Klaus Florian Vogt e Christian Gerhaher; a outra é produção nacional, com o Algol Ensemble, comandado pelo maestro Carlos Moreno, interpretando a versão de câmara da partitura preparada pelo compositor Arnold Schoenberg (selo Algol, solos de Fernando Portari e Rodrigo Esteves).

 

A carta a Bruno Walter é significativa de uma sensação que perpassa toda a produção mahleriana: o estranhamento perante o mundo. Em Ich Bin der Welt Abhanden Gekommen (Estou perdido para o mundo), uma de suas mais belas canções, o poeta despede-se do mundo, buscando refúgio em "sua canção, seu amor, sua poesia". A despedida não precisa ser compreendida como morte - é, antes, a aceitação de um paradoxo: ao mesmo tempo em que se vive intensamente os estímulos externos, o eco por eles produzido dentro do homem o levam em direção a uma individualidade que torna qualquer interação improvável - ou mesmo impossível. O "nada" não é o vazio mas, antes, uma profusão de sensações em que toda e qualquer certeza carrega dentro de si uma série eloquente de questionamentos. E incertezas.

 

Na Canção da Terra, essas ideias ganham nova força perante um momento particularmente conturbado da vida de Mahler. Além de ser forçado a pedir demissão de seu posto de diretor da Ópera de Viena, ele perde a filha e descobre que sofre de uma doença incurável no coração. Busca então o refúgio em Toblach - sua mulher Alma Mahler, que o acompanha na viagem apesar do distanciamento iminente dos dois, refere-se a este verão como "sombrio", repleto de "ansiedade e dor". Os textos da obra foram extraídos de uma coletânea de poemas chineses traduzidos para o alemão por Hans Bethge. E não é difícil compreender o impacto causado por eles em Mahler - os versos transbordam melancolia e falam a todo instante da "felicidade perdida", que só pode ser reencontrada durante o sono a que se chega depois da extinção da vida.

 

O ponto alto da leitura de Kent Nagano é a última das canções, A Despedida, a mais longa do ciclo. O maestro consegue manter a unicidade de um trecho que leva o ouvinte em direção ao mais profundo desencanto, à oposição com as forças da natureza, à resignação perante a certeza da morte, para, em seguida, explodir em uma melodia de rara beleza, que sugere a "volta do verde", a primavera da Terra, o "brilho do horizonte". Nos momentos finais da partitura, o barítono repete suavemente a palavra "eternamente" até que a música enfim se extinga. Seria a eternidade a expressão máxima da ausência?

 

No final da estada em Toblach, Mahler escreve outra carta a Bruno Walter. Desta vez, afirma que é um novo homem. E que acaba de escrever "minha obra mais pessoal". O compositor morreria pouco depois, em maio de 1911. Ele não viveu para assistir à estreia da peça, conduzida por Walter em setembro daquele mesmo ano. E para ver "sua obra mais pessoal" tornar-se testamento do fim do século 19. E de todas as passagens de séculos que ainda estão por vir.

Publicidade

 

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.