Luiz Pié, o ex-interno de orfanato que empolga a MPB

Roberto Menescal e Milton Nascimento trabalharam na produção de 'Memória Afetiva', seu disco de estreia

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Por Julio Maria
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Poá, Grande São Paulo, 1995. A liberdade chegou ao orfanato em uma caixa de papelão. Uma família dos Estados Unidos enviava para o menino Pelezinho – 8 anos, sem pai nem mãe desde os 3, morador da casa Áustria do complexo Aldeias SOS – uma vitrola e 26 LPs. Ele, os oito irmãos do destino e a mãe social que viviam na mesma moradia estranharam. Um vitrola e 26 LPs serviriam exatamente para quê? O que faltava ali era futuro, não distração. Assim que a poeira baixou, o garoto abriu o pacote, ligou a vitrola e fez girar o primeiro vinil. O sax de Wayne Shorter, tocando Speak No Evil, instalou-se em uma de suas vértebras lombares, o piano tomou-lhe os dois lados do cérebro e a bateria o ergueu do chão. Pelezinho voou sobre os muros do orfanato, deu duas voltas no mundo e nunca mais foi o mesmo.

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Vila Isabel, Rio, 2015. Alguns músicos aguardam o cantor Luiz Pié em um estúdio para ensaiar o show que farão com ele na quarta, dia 18, no Teatro Rival Petrobrás. Seu disco de estreia, Memória Afetiva, tem tratamento luxuoso. A produção e os arranjos são de Roberto Menescal e o cantor Milton Nascimento faz participação especial em Pai Grande. O repertório tem harmonias encrencadas que passam por Luiz Bonfá e Antonio Maria (Manhã de Carnaval), Carlos Lyra e Vinícius de Moraes (Sabe Você), Danilo Caymmi e Dudu Falcão (O Bem e o Mal). “Ele nasceu cantor, não tem como explicar”, diz Milton Nascimento. “Essa voz é tudo que eu gostaria de ter na vida”, fala também Menescal.

O telefone do estúdio toca e o empresário atende. “Vai entrevistar o Luiz? Só um momento.” Os 20 anos que se passaram desde que a caixa de papelão chegou ao orfanato parecem um século de revoluções na vida de Luiz Fernando Gonçalves Martins, ex-Pelezinho, atual Luiz Pié. Ele viveu dos 3 aos 17 anos no orfanato depois que sua mãe, moradora de rua, foi deposta da própria maternidade pelo Conselho Tutelar. Com o tempo, as poucas imagens que ele tinha na lembrança de uma mulher que o alimentava deixaram de existir. “Não sei mais se minhas lembranças são reias ou sonhos”, conta. Ao atingir a maioridade e sair para o mundo, mesmo sem estrutura familiar, trabalhou no Hospital das Clínicas de São Paulo como auxiliar administrativo em regime de estágio por dois anos, até que o contrato chegou ao fim e um novo abismo se abriu.

Sem recursos, Pié achou abrigo em uma pensão no centro, um depósito que empilhava em beliches 15 almas por quarto. Muitas vezes, dormir na rua era melhor. Um emprego como lanterninha de cinema no Shopping Eldorado passou a oferecer algum dinheiro, imediatamente gasto em uma lan house na região da Cracolândia. Pié chegava a investir R$ 20 por dia – uma fortuna para quem andava com a mesma roupa por um mês – em frente a um computador para pesquisar a obra de seus ídolos. Gente como Gal Costa, Caetano, Djavan, Nana e Caymmi, todos que haviam chegado em forma de LP na velha caixa de papelão. Depois de vasculhar o site de Caetano, que se tornaria seu primeiro ídolo, seguiu para o de Dorival e, depois, Nana, Emílio Santiago, Gilberto Gil. “Eu saía da lan house cantando em plena Cracolândia.” E o que será que o segurava contra as seduções do roubo e os alívios do crack nos dias em que as paredes do estômago colavam umas às outras? “Fui salvo pela oportunidade.”

Antes, chegaram os anjos. Um deles, o ator Diego Tresca, sentiu sua musicalidade saindo pelos poros e o apresentou a instrumentistas de São Paulo, como o maestro Nelson Ayres. O dono de uma escola de música na cidade apostou no que ouviu e lhe ofereceu uma bolsa de estudos por dois anos. Pié estudava de segunda a sexta, muitas vezes o dia todo. Outra porta se abriu com um convite e ele embarcou para João Pessoa, na Paraíba, para aprender mais, por quatro meses, com o maestro João Linhares, então titular da Orquestra Sinfônica do Estado. Um dia, a saudade dos irmãos de orfanato bateu e ele resolveu ligar para São Paulo.

Pié soube então que a família de norte-americanos que havia enviado a caixa de LPs a Poá, e mais tarde mandara também um violão, escreveu um e-mail perguntando como ele estava. Pié recebeu de volta a informação de que eles estavam de malas prontas para morar no Brasil. Um reencontro foi marcado no Rio e Pié deixou João Pessoa com taquicardia. O menino havia crescido e cantava como poucos. Um vozeirão que nada lembrava Pelezinho. Os americanos, orgulhosos, resolveram jogar mais pesado. “Vamos bancar seu primeiro disco”, disse a ele o padrinho Scott Coffey.

Agora com patrocinador, Pié foi atrás de quem sabia brincar. Depois de assistir a um show de Marcos Valle e Roberto Menescal na casa de espetáculos Miranda, no Rio, levantou-se, respirou fundo e pulou da montanha sem paraquedas. “Assim que terminamos, ele veio me perguntar se eu poderia falar com ele sobre um projeto. Ele queria fazer um disco”, conta Menescal. Uma semana depois, estavam gravando as primeiras músicas no estúdio do compositor. E uma das canções era Dorme Profundo, que Marcos Valle havia feito com o parceiro Pingarrilho para seu segundo disco, O Cantor e o Compositor (1965), e, regravado em inglês para o Samba 68. “Ele falava como um grande fã de nossas músicas e admirador do Emílio Santiago”, lembra Valle.

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É quando Milton Nascimento entra na história. Ele já havia conhecido Pié pelas dicas de Diego Tresca, um de seus muitos afilhados, mas não esperava se deparar com uma gravação daquelas. “Faz pouco tempo que o Pié apareceu lá em casa dizendo que ia gravar um disco, e que Pai Grande estaria no repertório. Fiquei muito surpreso”, conta Milton. A canção chegou, então, produzida por Menescal e com a guitarra de Wilson Lopes, um dos músicos da banda do artista. “Não acreditei. Tudo nele tem verdade. É sutil, sofisticado, não tem cena. É música e mais nada.”

Pié, no roteiro que parece persegui-lo pela vida, realiza um sonho remando contra a correnteza. “Esse álbum é um pouco na contramão do que toca nas rádios, mas ele peitou esse desafio. Quer cantar apenas o que gosta”, diz Menescal. O próprio sabe que está só, ou quase, quando decide cantar Noel Rosa (Último Desejo), Niltinho e Haroldo Lobo (Tristeza) ou Rosa Passos (Abajur Lilás). Menescal volta a assinar embaixo: “Além de talento, tenho encontrado nele profissionalismo e retidão que me dão vontade de ajudá-lo a romper essa barreira quase intransponível para a entrada de um novo artista no cenário com a linha que ele escolheu. Eu o convidei a participar de dois shows meus e a aceitação dele pelo público foi impressionante, coisa que vi pouquíssimas vezes em minha carreira”. Com a voz sempre doce, sem a aspereza que a vida tanto tentou deixar, Luiz Pié parece estar sempre ouvindo os vinis da velha caixa de papelão enquanto fala: “O que tem neste disco é apenas a minha verdade”. 

CRÍTICA - Quando a paixão pelos próprios graves passar, será perfeitoLuiz Pié começa com um disco de crooner, um álbum de regravações com significados poderosos em cada canção. Foram muitas dessas músicas, e muitos desses compositores, que salvaram seus piores dias, que impediram que ele se brutalizasse primeiro na ausência de pais, ainda que com os carinhos de um projeto de orfanato vitorioso do interior de São Paulo, depois nos dias em que sobrevivia na selva dos moradores de rua de São Paulo.

Sua verdade, como disse, está aqui. E ela também o faz, agora, um ser estranho em um planeta habitado por vozes de cantoras. Pié está só quando olha para os lados. Não há hoje no País nenhum rapaz com 27 anos, em início de carreira, que cante mais do que ele. Não há ninguém de sua geração, sequer, que assuma uma carreira sobre um repertório parecido com o que traz. Pié não está só quando olha para Menescal. Não há outro produtor que entenderia melhor aonde ele quer chegar. Sua guitarra, seus timbres de teclado, suas colocações de baixo com bateria contida, seu clima da melhor boate dos anos de samba-canção, sua bossa. Menescal fez de tudo para deixá-lo voar no canto da fala, não da impostação. Na emoção do timbre, não do vibrato.

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O risco de Pié está na paixão que tem pelos próprios graves, e deve ser difícil não se apaixonar por algo pelo que todos a seu redor se derretem. É aí que a vida guarda seus botes. Pié ama os próprios graves, e isso pode ser perigoso. Quando vai a eles, faz com tanto empenho e vontade em ressaltá-los que é como se transformasse em outro, como se cantasse a mesma canção com intenções diferentes. Suavidade nos médios e força nos graves. A passagem para essas regiões mais baixas ainda não tem a naturalidade que deixará seu canto mais verdadeiro, que não soará como um corpo estranho.

Marcos Valle chama atenção para uma outra questão importante: a figura de Emílio Santiago deve perseguir Pié, independentemente de sua vontade. Uma referência estupenda que lhe fará bem no momento em que sua identidade for mais bem definida. Ela começa agora, em belas amostras de delicadeza que aparecem em A Volta (de Menescal e Bôscoli) - que perfeita estaria sem os poucos ataques súbitos aos graves -, no samba de Ciúme (de Carlos Lyra) e em Pai Grande, um carinho paterno de Milton Nascimento. Nem todo Luiz Pié está aqui, mas assim é seu começo. E sua obrigação diante da música - agora, mais do que nunca - é ser feliz e devolver a ela cada nota que lhe salvou. 

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