Letras inéditas revelam um outro Adoniran Barbosa

O popular autor de Trem das Onze era um senhor culto de fala rebuscada, um religioso ferrenho, um pensador lírico e melancólico. Um outro lado de Adoniram vem à tona em um arquivo de cerca de 100 letras

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Por Agencia Estado
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A pasta de plástico esquecida no fundo da gaveta de um velho armário no número 1.700 da Avenida Rebouças guarda um Adoniran Barbosa que assusta sua própria família. Folhas com letras inéditas atribuídas ao popular autor de Trem das Onze revelam um senhor culto de fala rebuscada, um religioso de fé cega em Jesus Cristo, um pensador lírico e introspectivo que cita sério o poeta inglês Lord Byron, o bandeirante João Ramalho e os padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Um homem que faz versos como "os jesuítas e as missões / os aventureiros bandeirantes / entradas, fronteiras e os sertões / histórias de sagas triunfantes." As faces ocultas de Adoniran Barbosa estão na pasta do senhor Juvenal Fernandes, um antigo amigo do sambista, ex-sócio da editora Fermata e atual sócio da editora e gravadora Arlequim. A soma do material é espantosa. Segundo o empresário, seu arquivo reúne perto de 100 letras, 95% delas intocadas até hoje. Se Adoniran Barbosa tem 124 composições registradas, o mundo só conheceria então um pouco mais da metade de sua produção. As criações teriam sido entregues a Juvenal Fernandes pelas mãos do próprio Adoniran Barbosa quando eram amigos. "Ele chegava ao meu escritório na editora com suas anotações feitas em qualquer papel que achava pela frente e dizia: ´Guarda aí com você Juvenal, um dia a gente mexe nisso´." Quase ninguém havia visto o material até que, em 1989, Juvenal Fernandes foi ao Rio de Janeiro bater na porta da senhora Maria Helena Rubinato, filha e herdeira única de Adoniran que sempre viveu à distância do pai. "Fui criada por uma irmã de Adoniran. Não vivi no meio artístico." O homem que Maria Helena define hoje como "educado, acima de qualquer suspeita" entrou em seu apartamento com uma relação de 41 músicas inéditas. Sem ver as letras, Maria Helena assinou um contrato a pedido do senhor Juvenal Fernandes e deu a ele poderes para lançar as músicas. O peito de Adoniran começa a virar ´tauba de tiro ao álvaro´ quando a história salta para 2004, festa dos 450 anos de São Paulo. Juvenal Fernandes conversa com o amigo José Chagas Reli, na Arlequim, e decide bancar um projeto para o aniversário da cidade: convidar renomados compositores para musicarem as letras e participarem de um disco com as canções inéditas. "Estamos fazendo os convites para o disco sair este ano", diz Chagas. Cesar Camargo Mariano foi convidado por e-mail e respondeu com interesse. O compositor Caetano Zammataro ficará responsável por 13 letras. Izaías do Bandolim deve ser convocado em breve. Um juiz cantor e compositor, Flávio Monteiro de Barros, fará músicas para outras três. O mesmo material que tem poder para reescrever episódios inteiros da música brasileira ao traçar um Adoniran Barbosa muitas vezes distante do cronista das ruas que cantava em português errado reserva pólvora para provocar uma cratera no meio artístico. Sérgio Rubinato, sobrinho de Adoniran, e Antonio Gomes Neto, o Toninho, fundador do Demônios da Garoa, não acreditam. Maria Helena Rubinato, a filha, estranha algumas letras. O pesquisador Airton Mugnaini Jr., autor do livro Adoniran: Dá Licença de Contar, acha possível. Celso de Campos Jr., biógrafo do autor, estranha a quantidade das canções, mas acredita que muitas sejam mesmo do compositor. Um Adoniran muito diferente - O fato é que Adoniran Barbosa autor de Amo São Paulo, uma emotiva e extensa declaração de amor à cidade feita há exatos 40 anos, aparece com estilo bem diferente daquele que canta "eu sou a lâmpida e as muié é as mariposa." Ninguém nunca esperou que criaria versos como: "E descortinou-se Pindorama / com suas paisagens deslumbrantes / a seiva, a mata que se inflama / ardente terra de gigantes..." Seu lado cristão teria vindo à tona em abril de 1980, dois anos antes de sua morte. Pai Nosso, é uma versão em prosa para a oração católica: "Minha Oração é o Pai Nosso / Que estais no céu para sempre / Que seja santificado / o Seu nome, Senhor Deus ...". Existência, uma inspiração assinada em abril de 1963, revela conhecimento da obra do poeta romântico inglês Lord Byron. "Sou como sou / Não pedi a vida e não me fiz / Byron disse: estou aqui, estou comigo / sou feliz." Segundo Sérgio Rubinato, seu tio, quando lia, preferia os cadernos de esportes e as crônicas policiais. Airton Mugnaini Jr., biógrafo do sambista, não questiona a autenticidade dos versos. "Adoniran Barbosa ia anotando suas idéias em guardanapos e guardando onde desse. Esse material ia para mãos de terceiros." Sobre o estilo das escritas no material de Juvenal Fernandes, opina: "Os compositores têm direito a fazer coisas assim. São brincadeiras, experiências. Nem tudo deveria ser para virar música. Mas acredito que, de qualquer forma, seja uma obra menor com relação ao que ficou conhecido." Juvenal Fernandes, em meio à fogueira, toca o projeto do disco de inéditas para sair o quanto antes e se defende: "Minha vontade é de rasgar estes papéis quando dizem que não são de Adoniran Barbosa. Não faço isso porque a história iria perder muito. Se não foi o Adoniran quem escreveu isso quem foi? O bispo? O papa?"

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