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Lera Auerbach cria ótima obra a partir de carta-poema a Rilke

Russa apresentou-se na quinta na Sala São Paulo em concerto receptivo para o novo

Por João Marcos Coelho
Atualização:

A leitura da carta-poema que Marina Tsvetaeva escreveu em dezembro de 1927 a Rainer Maria Rilke pouco depois da morte do poeta alemão já proporciona fortes emoções. Mais ainda quando uma compositora atual, russa como Marina e na casa dos 40 anos, coloca música nestes versos impactantes, prenhes de sonoridade musical. Melhor ainda: a própria compositora também é poeta. A Sinfonia no. 2 – Réquiem para um Poeta, de Lera Auerbach, é daquelas obras que a gente não consegue – nem quer – esquecer. De grande porte, prevê coro, orquestra e, num felicíssimo lance criativo, os dois solistas, mezzo-soprano e violoncelo, encarnam Marina e Rilke. 

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Pena que, na última quinta-feira, boa parte da plateia tenha abandonado a Sala São Paulo após o término da primeira parte, encerrada com  A Tempestade de Tchaikovski. Eles não puderam brindar com Marina-Lera: “Feliz novo olhar, Rainer, feliz novo ouvido”. Azar de quem tem ouvidos conformistas. Sala de concerto não é spa de almas de ouvidos cansados. De novo: pena que só raramente irrompam obras que  nos deixem  receptivos para o novo.

Aliás, um verso como “feliz novo ouvido” remete, obrigatoriamente, aos votos de ano-novo de John Cage meio século depois, “Happy new ears”. Nesse sentido, a linguagem musical de Lera não é algo novo. Ela integra o universo geral da contemporaneidade à leste europeu e Rússia que Gidon Kremer tanto promove e a ECM de Manfred Eicher grava -- há décadas. Não se trata de cobrar “posição” de ninguém, só de constatar uma opção de Lera. Sua música justifica-se plenamente quando se alia a textos de forte conteúdo emocional. Tanto que Post Silentium, obra orquestral de 2012 que abriu o concerto de anteontem, apenas prova que ela sabe lidar com a paleta sinfônica: longos pedais, estridências bem colocadas, numa ambiência tonal declarada. Não que isso seja ruim. Apenas, é música que não se sustenta sem texto. Por isso na segunda sinfonia Lera consegue um resultado excepcional. A execução em geral foi  boa: excelentes a mezzo-soprano Zoryana Kushpler e o cellista Narek Hakjnazaryan; nem tanto as trompas, expostas demais e com falhas em Tchaikovski; a regência um tanto dura de Celso Antunes travou um pouco orquestra e coro.

Detalhe impossível de justificar: a Osesp coencomendou esta obra a Lera ao lado da Staatskapelle Dresden (já fez isso com John Adams e um mexicano).  Será que uma tradicionalíssima orquestra alemã necessita mesmo de parceiros latino-americanos para uma encomenda dessas? Por que uma orquestra norte-americana ou europeia não co-encomenda com a Osesp obras de grande porte, orquestrais, a compositores brasileiros? Uma via de mão única como esta parece tosco lance de marketing para aparecer no Primeiro Mundo.

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