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Leandro Carvalho dá voz a João Pacífico

O jovem violonista gravou recitativos do grande poeta da canção caipira pouco antes de sua morte, em 1998, e lança disco em homenagem ao autor de Cabocla Teresa e Chico Mulato

Por Agencia Estado
Atualização:

João Pacífico é um dos nomes fundamentais da canção caipira. Compôs, por seus cálculos, quase um milhar e meio de músicas. Várias delas são clássicos do gênero: Cabocla Teresa, Mourão da Porteira, Chico Mulato, por exemplo. Cada uma dessas três teve mais de uma centena de gravações. Outras alcançaram número semelhante. João morreu em dezembro de 1998, aos 89 anos. Leandro Carvalho é um jovem violonista estudioso da cultura brasileira. Tem, hoje, 26 anos, três discos gravados, e trabalhos desenvolvidos sob incentivo e orientação de admiradores do quilate de Turíbio Santos e Ariano Suassuna. Acaba de voltar da Europa, onde fez curso de dois anos de regência. Os dois primeiros discos de Leandro foram dedicados à música de João Pernambuco, autor, entre outras preciosidades, de Luar do Sertão (com Catulo da Paixão Cearense) e Sons de Carrilhões - João Pernambuco é uma das referências básicas do violão brasileiro. O terceiro CD acaba de sair. Chama-se Leandro Carvalho e o Brasil de João Pacífico. Se os dois primeiros discos eram trabalhos de violonista refletiam, na face mais evidente, o olhar do violonista para um mestre do instrumento, este terceiro aprofunda o que estava subjacente nos outros: a paixão profunda por nossas expressões culturais mais autênticas, coisa que vai tomando ares de dedicação exclusiva. Leandro tinha 16 anos quando Turíbio Santos, que o vira, um ano antes, solando à frente de uma orquestra, num concerto em homenagem a Eleazar de Carvalho, propôs-lhe o mergulho na obra de João Pernambuco. Com esse outro João, o Pacífico, a história veio de berço. O pai de Leandro era amigo do compositor, que lhe freqüentava a casa e era figura central das festas, cantando, contando histórias, declamando. Em 1998, Leandro resolveu prestar homenagem ao amigo mais velho. Usando um gravador digital, registrou a voz de João Pacífico, declamando, cantando, com a idéia de fazer um disco. Mas João Pacífico morreu em dezembro daquele ano. De lá para cá, Leandro andou em busca de apoio financeiro para terminar o trabalho. O mais importante, já tinha: a voz do mestre. "João declamava como ninguém", escreve Leandro, no texto do encarte do CD. "Para suas criações poéticas e musicais, o papel é um registro limitado. Saídas de sua boca, vindas de suas entranhas, as palavras vivem e assumem contornos melódicos singulares." E, "lapidadas criteriosamente pelo tempo", aquelas foram as últimas declamações do poeta. Origem - João Batista da Silva nasceu em 1909, na Fazenda Cascalho, no entroncamento ferroviário de Cordeiro, hoje Cordeirópolis, perto de Limeira, no interior de São Paulo, filho único de escrava alforriada, nhá Domingas, e de um português contador de histórias, de cujo nome não se encontra registro. Passou os primeiros anos na terra natal. Em Limeira fez o primário e de lá foi para Campinas, morando na casa de Ana Gomes, irmã do compositor Carlos Gomes, de onde migrou para São Paulo, em 1924. Vivendo de serviços menores - ajudante de lavador de pratos na estrada de ferro - , começou a fazer versos para as moças bonitas e, logo depois, a compor. Resolveu mostrar as músicas ao já famoso compositor de música caipira Paraguassu. Na porta da Rádio Cruzeiro do Sul encontrou o poeta Guilherme de Almeida, a quem pediu ajuda para subir no elevador - não sabia mexer nos botões. Guilherme simpatizou com o garoto e o levou direto a Paraguassu, que o ouviu e achou suas composições parecidas com as de Raul Torres. "Acho que daria uma boa parceria", teria dito Paraguassu. Por isso, apresentou os dois. Raul gravou, em 1935, a embolada Seu João Nogueira (que depois Aurora Miranda regravaria). E os dois começariam uma parceria que durou mais de 40 anos - até a morte de Raul. O primeiro sucesso nacional assinado por eles foi Chico Mulato. Veio depois Cabocla Tereza. Nos anos 40, João Pacífico cantava com Raul Torres e Florêncio. Viajavam para o Rio, onde cantavam as composições recentes, apresentando-se nos programas de rádio mais importantes. Mas, solando, ele gravou apenas dois discos, o primeiro deles em 1981. João Pacífico (o apelido veio do temperamento calmo, oposto ao do parceiro Raul) ficou amigo de Jacó do Bandolim (outro gênio famoso pelo pavio curto), com quem compôs o choro Doce de Coco. É, esse mesmo: o que todo mundo conhece com letra de Hermínio Bello de Carvalho, feita muitos anos depois. Hermínio, com permissão de Jacó, mudou a letra original, mantendo o título do choro, hoje clássico. Mas aquela versão inicial chegou a ser gravada - com acompanhamento do próprio Jacó - por Isaurinha Garcia. O disco - É a letra de João Pacífico que está no disco-homenagem de Leandro Carvalho, interpretada por Sandra Pereira, uma das convidadas especiais do titular do CD, que divide os violões com Ítalo Peron e tem ainda a participação do bandolim de Prata e o acordeão de Leroy Almêndola. Outros participantes são Jair Rodrigues (que canta Cabocla Teresa), o grupo Trovadores Urbanos (Alpendre da Saudade, letra de Edmundo Souto), Tonico (da dupla Tonico e Tinoco, voz em Chico Mulato), o violeiro de dez cordas Claudinho. João Pacífico inventou a história de declamar os versos da canção antes de cantá-las, coisa que muito cantor caipira (e muito cantor não-caipira) faz até hoje. Os recitativos do CD, acompanhados pelo violão de Leandro, trazem um brinde à parte: melodias de Levino Albano Conceição, um músico mato-grossense, considerado um dos fundadores do violão brasileiro (com João Pernambuco e Dilermando Reis, entre outros mestres) e de quem não se conheciam composições. As valsas de Levino estão, nesse disco, apresentadas pela primeira vez. Ou seja: Leandro Carvalho e o Brasil de João Pacífico vale por um tratado de cultura brasileira. Como todo trabalho independente, está à venda em poucas lojas, mas pode ser pedido diretamente ao autor, pelo e-mail leandro@uol.com.br.

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