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"Kseni - A Estrangeira", a nova ópera de Jocy de Oliveira

Concerto que será apresentado no Sesc Pinheiros estreou na noite de quinta-feira no Teatro Carlos Gomes, no Rio

Por Agencia Estado
Atualização:

Se é mera coincidência ou fruto de uma tomada de consciência dos nossos teatros, só as próximas temporadas poderão dizer. Mas o fato é que, só neste ano, os palcos de São Paulo já assistiram à estréia de três óperas de compositores brasileiros - mais notadamente, na semana passada, de "A Tempestade", de Ronaldo Miranda, encomenda da Banda Sinfônica. E, no final de outubro, será a vez de "Olga", de Jorge Antunes, no Teatro Municipal. Antes, porém, nos dias 14, 15 e 16, Jocy de Oliveira traz ao Sesc Pinheiros sua nova criação, "Kseni - A Estrangeira", que estreou na noite de quinta-feira no Teatro Carlos Gomes, no Rio. A estréia de uma nova ópera é sempre um acontecimento. Ao longo do século 20, o gênero foi tratado às vezes com desconfiança pela vanguarda. Novos títulos rarearam. Somente nas últimas décadas a produção voltou a crescer. Mas essa retomada traz em si uma pergunta inevitável: depois de todas as inovações propostas pela vanguarda, depois de tantas escolas estéticas que redefiniram a própria noção que se tinha de música, o que seria uma ópera hoje, nos primeiros anos do século 21? Pode-se passar horas - e muitas e muitas páginas de jornal - tentando encontrar uma resposta. Mas só há uma maneira de saber: compositores precisam escrevê-las e, para isso, saber que os teatros estarão dispostos a produzi-las. E, a partir daí, é o prazer do público ver como cada autor - de acordo com sua trajetória, as escolas estéticas com que flertou, o caminho pessoal que encontrou - dialoga com este gênero, que jamais deixou de fascinar platéias. "Kseni, A Estrangeira" é bastante representativa do trabalho de Jocy de Oliveira, não apenas por ter como ponto de partida uma figura feminina mas também por reiterar sua busca "por uma nova linguagem cênico/musical, tentando encontrar novos modelos de estruturas que possam vir a transformar o conceito tradicional de ópera ou música-teatro". O tema central da obra é a diferença - e a intolerância por ela provocada. Para isso, ela resgata a figura de Medéia, personagem da mitologia grega que, casada com Jasão, é trocada por uma princesa e banida de Corinto. Como vingança, enfeitiça o vestido de noiva da princesa e mata os próprios filhos. Para Jocy, Medéia é símbolo da mulher "transgressora, desterrada, imigrante, denegrida, discriminada", que "preferiu levar em seu carro de fogo a alma de seus filhos mortos a deixá-los como parte de um mundo que lhe havia negado o direito de ser diferente". Daí, o pulo para nossa época, que, pelo filtro da compositora, é recriada sob o signo da intolerância: vivemos a época da "invasão pela riqueza natural", da "destruição da identidade", da "cruzada da paz, que abandona às margens os feridos apátridas, em nome de códigos de comportamento", da "discriminação de povos por suas crenças". Não é preciso muito para ler, em trechos como os descritos acima, alusões às guerras no Afeganistão e no Iraque e suas implicações econômicas ou ao racha ideológico entre Ocidente e Oriente e o preconceito que dele foi uma das conseqüências mais imediatas. E como esta proposta se traduz em ópera? "Kseni - A Estrangeira" não segue nenhuma linearidade. Não há uma trama, um enredo, um encadeamento de ações. A narrativa é fragmentada, trabalhando simultaneamente com diversos signos relacionados tanto ao mito de Medéia como à concepção contemporânea de guerra O pedido "Libera" proferido pelo filho de Medéia (interpretado por Henrique Tinoco) é também o pedido de libertação de nossa época; da mesma forma, a queima do vestido de noiva da princesa com que se casaria Jasão pode ser lida como a queima simbólica da mulher submissa, que abre mão de sua individualidade para se encaixar em padrões preestabelecidos, o que, por sua vez, não deixa de ser a representação de sociedades que abrem mão de suas individualidades em busca de inserção no mundo globalizado. É, mais do que em uma preocupação narrativa, neste diálogo entre as duas épocas, entre a tragédia grega e os estímulos do mundo atual, que se constrói "Kseni - A Estrangeira". E esse diálogo se apóia em diversas mídias. Musicalmente o ponto de partida é uma melodia medieval anônima que tem como tema o mito de Medéia. Ela vai sendo manipulada ao longo de toda a obra (assumindo tons ora rituais, ora nostálgicos e, em outros momentos, revestida de caráter etéreo que beira a inconsciência) por um conjunto musical composto por violoncelo, clarineta, clarone, guitarra elétrica, tambura, percussão étnica; pela voz da soprano (a fantástica Sigune von Osten), muitas vezes explorada como um instrumento de percussão; por áudio pré-gravado; e por estruturas metálicas das quais se obtém sons seja pelo contato com as mãos seja por meio do arco tradicional de instrumentos de cordas. Mas a música é só parte do espetáculo. Não dá para pensar Kseni sem a direção de arte de Jum Nakao e Kiko Araújo, a cenografia de Fernando Mello da Costa, a atuação da atriz Marilena Bibas ou os vídeos dirigidos pela própria compositora. É nessa unidade de elementos que a gente encontra a proposta de ópera oferecida por Jocy de Oliveira. Música, cena, figurino - uma coisa não é decorrência da outra. Todos os elementos surgem em conjunto. E, com isso, a partitura, ao mesmo tempo em que nos propõe uma reflexão sobre os caminhos do mundo, propõe também uma discussão sobre os próprios conceitos de música, de teatro, se distanciando do conceito tradicional de ópera e, ao mesmo tempo, ao propor uma obra de arte que tenta englobar os mais distintos elementos, resgatando aquilo que faz dela um gênero tão especial. Sem paradoxos.

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