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Katia Labèque, música em sintonia com século 21

Como nos iPods, o disco 'Shape of my Heart' traz uma aleatória sequência de gêneros

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Tome-se Katia Labèque, pianista francesa famosa no mundo inteiro por seu duo de piano com a irmã Marielle, e convoquem-se superstars de vários gêneros musicais (Sting, Herbie Hancock, Chick Corea, Gonzalo Rubalcaba) para duos. No repertório, acrescentem-se pitadas de clássicos inesquecíveis (o lacrimoso Prelúdio nº 4 em Mi Menor, Opus 28, de Chopin e a hipnótica, estática, Gnossienne nº 3, de Erik Satie) e grupos pop como Radiohead (Exit Music) e até os Beatles (Because).

 

 

Um inesperado toque experimental (com o guitarrista francês de 30 anos David Chalmin) e uma daquelas pérolas esquecidas de um nome conhecido do passado (a Meditação, interlúdio instrumental do quarto ato da ópera Wunthering Heights, composta por Bernard Herrmann, a alma gêmea musical de Hitchcock).

 

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Uma receita dessas tinha tudo para converter-se em apenas mais um daqueles discos que não acrescentam algo a coisa alguma, feitos com o objetivo fundamental de apenas vender bem no mundo inteiro.

 

Tinha, mas felizmente para nossos ouvidos, algo saiu "errado". Talvez porque seja imenso o talento e rigorosa a autocrítica da pianista, prestes a entrar na casa dos 60 anos - que completará no próximo dia 11 de março (a irmã Marielle chega aos 58 também em março, só que no dia 6).

 

Shape of My Heart, o CD que Katia, a mais bela e musicalmente atrevida das Labèque, lançou no mercado no finzinho de 2009 por seu selo KML, é um passeio atualíssimo e fascinante pelas músicas que constroem o dia a dia de um habitante do século 21. Como nos iPods, os gêneros empastelam-se saudavelmente. A sequência é propositalmente aleatória, cruzando fronteiras, pulando cercas estilísticas, do pop ao jazz, do clássico à música experimental.

 

Tudo começa com duas belíssimas e antigas canções de Sting (Moon Over Bourbon Street, do CD The Dream of The Blue Turtles, de 1985) e a faixa-título Shape of My Heart, de Ten Summoners Tales, de 1993. Ele está soberbo no seu território, e a voz rouca e sutil combina-se maravilhosamente com o piano preciso de Katia, que jamais toca uma nota supérflua (sobretudo na segunda canção).

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E já que o clima é de iPod, faça você mesmo sua sequência preferida. A minha junta os três duos com os pianistas de jazz citados. Corea/Katia evocam a grandeza memorável de Bill Evans no clássico We Will Meet Again (embora seja impossível esquecer o próprio, num registro-solo de 1979); Rubalcaba/Katia desabam num bolerão harmonicamente moderníssimo em Besame Mucho; mas o destaque é a distendida (mais de 11 minutos) e ao mesmo tempo densa leitura que Katia e Herbie Hancock fazem do standard My Funny Valentine, a canção mais conhecida do musical Babes On Arms, de 1937, da gloriosa dupla Rodgers & Hart. Um início lírico e quase estático dá aos poucos lugar para uma abordagem quase chopiniana do tema, em que os acordes dela fazem o colchão para um rendilhado improvisado que só Hancock sabe criar; até que lá pelos 8 minutos e pouco um clima de boogie-woogie lento se intromete; finalmente, a coda retoma o belíssimo tema da canção.

 

O pop fundador dos Beatles comparece numa versão interessante porém previsível de Because. É bem mais criativo, do ponto de vista musical, o CD B for Bang Accros The Universe of Languages, de 2007, em que Katia se junta a um quarteto com guitarra e vocais, teclados, baixo e bateria, além das vozes de Patti Smith e do ator Daniel Day-Lewis. O CD alterna temas dos Beatles com improvisos, interlúdios e textos. É um projeto claramente experimental e muito bem-sucedido.

 

Assim como, aliás, Exit Music, a canção do Radiohead de 1996. Nessa faixa, a pianista utiliza a formação de trio, que chama de Katia Labèque Band no piano acústico, ao lado do inglês filho de bósnios Dave Maric pilotando eletrônica digital e analógica, e o norte-americano Marque Gilmore num instrumento que ele chama de bateria acustilétrica. O trio já gravou o CD Unspoken, em 2008 (selo KML).

 

O guitarrista francês David Chalmin, de 30 anos, é o xodó de Katia. Egresso do universo pop, também transita com desenvoltura no domínio da música experimental. Além de ser figura-chave na citada performance de Exit Music, Chalmin também interpreta no CD sua contemplativa Purple Diamond, coadjuvado apenas pelo piano.

 

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É um bálsamo ver Katia estabelecer limite apenas para o exercício de uma severa autocrítica que a impede de cometer as tolices habituais em músicos incensados por tanto tempo em suas carreiras. Ela vem exercendo nos últimos 20 anos uma liberdade absoluta e prazerosa, para ela e para os ouvintes. Trabalhou com o guitarrista John McLaughlin nos anos 80 e nenhum texto sobre ela deixa de citar que o mago do trompete-jazz, o norte-americano Miles Davis, dedicou-lhe duas canções em seu disco de 1985 You’re Under Arrest (denominadas Katia Prelude e Katia). Ele sabia mesmo das coisas.

 

As irmãs pianistas

 

Katia e Marielle Labèque poderiam deitar-se na cama, já que construíram uma fama planetária. Mas estão mais ativas do que nunca. O duo tem sua própria gravadora, KML (www.kmlrecordings.com) e também a Fundação KML (www.fondazionekml.com).

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Ambas possuem quatro metas básicas: levar a música clássica a quem não teve a chance de conhecê-la em seu processo educacional; estimular a educação musical para crianças; promover encontros entre artistas das artes visuais, cinema, teatro, literatura, dança e música; pesquisar e recolocar em circulação repertórios esquecidos para duo de piano e encomendar peças novas para compositores contemporâneos.

 

Paralelamente, a dupla de irmãs acaba de lançar um CD mais clássico. Pela primeira vez elas gravaram Erik Satie. Marielle toca o original ciclo Esportes e Diversões e os Prelúdios Flácidos (Para Um Cão); Katia lê as Gnossiannes; e juntas interpretam, a quatro mãos, o primeiro e o derradeiro ciclo de Três Peças em Forma de Pera e Três Pequenas Peças Montadas.

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