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Joyce Moreno reafirma talento à prova do tempo em álbum primoroso

'Palavra e Som' traz, em 13 canções, a levada rítmica arrebatadora da mão direita e a concepção harmônica em plena forma da esquerda

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Havia algo naquela mão direita que não poderia ser de Joyce. Afinal, observavam os músicos da época, mulheres não tocavam assim. Mas mulheres também não compunham assim e, quando o faziam, jamais usavam o feminino assim. Ainda supondo que usassem, poucas desafiavam os homens com tanta audácia, mais ou menos assim: “Oh venha me aprender / ser tudo o que já sou / Fazer o que faço no mesmo espaço em que você me achou / Cuidar do nosso lar, criar os bacuris / Botar cama e mesa, mas que beleza, venha ser feliz / Por mim já sei fazer o seu papel de cor / Já ganho o pão nosso de cada dia com o meu suor”.

Aos 69 anos, compositora chega com grande álbum Foto: Leo Aversa

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Os versos são de 1981, da canção Meio a Meio, muito antes das correntes de afirmação ganhar as ruas. Joyce Moreno já havia estabelecido seu espaço desde 1968, ao lançar o primeiro disco, e se fortalecido em 1979, quando Essa Mulher, parceria com Ana Terra, foi gravada por Elis Regina. Seu novo disco, Palavra e Som, retoma o tema em momento oportuno em duas canções, mas é bem mais do que isso. O primeiro álbum autoral depois de Tudo, de 2014, reapresenta os dons de mãos direita e esquerda que fazem de Joyce um raro caso de inspiração de matriz bossa-novista contínua e inoxidável. Aos 69 anos, ela cria com esse frescor: “Ouve o silêncio do amor / Tão ensurdecedor / Que explode, cala, arrebenta / E a alma assustada nem tenta / Entrar nas masmorras do amor / Pedindo em seu favor / Que venha a revolução”.

Os versos agora são de 2017, de O Amor É o Lobo do Amor, de tons mais carregados que Joyce usa para falar do abuso doméstico. “Eu sou uma feminista da velha guarda”, ela diz. “Mas não gosto do anglicismo ‘empoderar’.”  A bela O Poeta Nasce Torto foi o encontro com o parceiro que ela nunca teve. Torquato Neto, morto em 1972, deixou anotações que revelavam sua vontade de trabalhar com Joyce. Ao revirar o material do poeta para um documentário, o cineasta Marcos Fernando encontrou uma lista de projetos escrita por Torquato. Dentre tarefas como fazer músicas para outros intérpretes, havia o desejo de compor um “rancho com Joyce”. “Acho que ele pensou em uma marcha rancho.” A letra que ganhou seus acordes é uma carta poema escrita a Ronaldo Bastos, em 1969.

Joyce assume letra e música em quase todas as 13 canções. Além de O Poeta, há parcerias em Dia Lindo (com João Cavalcanti, do grupo Casuarina) e Casa da Flor (com Paulo César Pinheiro). Dia Lindo tem a voz de violoncelo de Dori Caymmi, com a alma deitada em cada nota, e a bossa jazz Mingus, Miles e Coltrane é sua bem-humorada declaração de identidade, a revelação das fontes que se liquidificaram aos sambas de Noel e às harmonias de Tom para formar sua personalidade: o baixista Charles Mingus, o trompetista Miles Davis e o saxofonista John Coltrane. Aqui, uma boa chance de saber de Joyce de onde vem a levada de sua mão direita, da qual tanto se fala e se ouve em Palavra e Som. “É coisa do meu professor, Jodacil Damaceno, que também deu aulas a Guinga e Rosinha de Valença. Ele fazia a gente usar dedos que normalmente não usamos na direita, como o anelar e o médio. Por ele, eu teria virado uma violonista clássica.”

Mais tarde, Joyce escreveu ao repórter que tinha uma roseira na mão direita. Fez silêncio e voltou logo depois, para desfazer a curiosidade jornalística enviando um áudio de sua voz cantando uma canção popular: “A mão direita tem uma roseira, a mão direita tem uma roseira / Que dá flor na primavera, que dá flor na primavera”.

‘Sinto como se fizesse propaganda enganosa do meu próprio país’Homenageada no mundo, Joyce Moreno diz sentir-se como se cantasse um país que, na prática, não existe

Um estranho sentimento de que algo não está certo. Muito estranho, mas é o que Joyce pensa quando é homenageada no exterior como uma das artistas que melhor divulga a imagem de seu país no mundo. “É como diz o Dori Caymmi, me sinto como se estivesse fazendo propaganda enganosa”, ela diz. “Cantamos um Brasil que não existe.”

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Sem uma agenda regular de shows em seu próprio país, Joyce segue recebendo homenagens que a reconhecem como uma das maiores criadoras da música moderna. Em 2004, recebeu nos Estados Unidos o Lifetime Achievement International Press Award, concedido justamente a quem divulga a boa imagem do país no exterior. Antes disso, em 2001, havia recebido a chave da cidade de Johnstown, na Pensilvânia, entregue pelo próprio prefeito. Mais recentemente, em 2015, foi homenageada pela Câmara dos Vereadores de Boston e pela Assembleia do Estado de Massachusetts durante viagem para falar aos estudantes de música da Berklee College of Music.

No próximo mês, ela segue para o maior festival da Dinamarca, o Copenhagen Jazz Festival, e, em agosto, dedica-se a uma longa turnê nos Estados Unidos, que começa em Seattle e termina no Blue Note de Nova York. De lá, embarca para uma séries de shows no Japão. E está tranquila. Em 2016, a embaixadora cruzou o Atlântico sete vezes entre fevereiro e dezembro