Jaques Morelenbaum diz amém aos mestres em álbum solo

Aos 60 anos de idade, disco 'Saudade do Futuro, Futuro da Saudade' é o primeiro trabalho individual de sua carreira

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Por Julio Maria
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Jaques foi de Fiat 147. Mais de 1800 quilômetros do Rio de Janeiro a Salvador com o violoncelo no banco de trás e a trouxa de roupas ao lado, dirigia sem saber que havia pela frente uma encruzilhada sem placas nem farol. Cabeludo, transbordava da ingenuidade que seus 20 anos permitiam como integrante da Barca do Sol, o grupo de rock progressivo que formou nos anos 1970 louco para mudar o mundo, seja lá o que isso fosse. Jaquinho chegou possuído à Bahia. Um dia antes do show na concha acústica do Teatro Castro Alves, foi à orla distribuir panfletos para lotar os 5 mil lugares do espaço. Uma euforia que logo seria trocada pela angústia.

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O show começou com 83 pessoas na plateia. Um fracasso retumbante na alma do garoto que já havia sido produzido por Egberto Gismonti e que sabia o que era música da boa antes mesmo de falar, graças à formação erudita dos pais. Jaques olhou para o público, ou o que havia dele, e entrou naqueles processos de reflexão profunda que só não levam à depressão porque, antes, pedem decisão: ou ele moraria na Bahia como um hippie vendedor de artesanatos ou largaria tudo para estudar música de verdade. Jaques voltou para casa com o Fiat e o celo, olhou nos olhos do pai e perguntou algo como: “O que eu faço, meu velho?”. O pai sorriu e sugeriu a New England Conservatory of Music, em Boston. Era hora de trocar a carreira certa de violoncelista e cantor em um grupo de rock que firmava sua relevância na psicodelia dos anos 1970 pela incerteza de um dia ser, ele mesmo, um músico relevante.

A escolha de Jaques Morelenbaum o levou mais longe do que seu Fiat 147. Aos 60 anos, 40 de lançamento do primeiro álbum da Barca do Sol, hoje uma raridade de colecionador, ele fala como alguém que viveu três anos em um. Seu violoncelo já conduziu Caetano Veloso, Gal Costa, Cesaria Evora, David Byrne, Ryuichi Sakamoto e, mais de perto e por dez anos, Tom Jobim, quando formou a Nova Banda para acompanhá-lo. Entre 1991 e 1993, acompanhou, ao mesmo tempo, Tom, Caetano e Egberto Gismonti.

Sob a aura de João. Músico já havia decifrado o "código João Gilberto" no Japão, em 2001 Foto: Roberto Cifarelli/Divulgação

E, então, curiosamente, só e apenas agora, Jaques lança seu primeiro disco solo. Solo no sentido de assumir ele as linhas melódicas, mas não no de estar só. A seu lado, vem o CelloSambaTrio, com Lula Galvão no violão e Rafael Barata na bateria e percussão. O repertório é quase um desabafo, uma necessidade de presentear quem o presenteou pela vida toda. A única faixa que assina é Maracatuesday, com um diluído ritmo de maracatu na caixa embalando uma triste e bela melodia. O que vem a mais é clássico dos clássicos - Tim-tim por Tim-tim, Eu Vim da Bahia, Coração Vagabundo, Retrato em Branco e Preto, Você e Eu e Receita de Samba - com o frescor de serem cantados pela melancólica voz de um violoncelo, talvez o mais triste dos instrumentos.

Jaques não concorda. E explica: “A extensão do celo coincide com a extensão da voz humana. Sendo a voz humana a expressão sonora mais tocante, ele lembra um lamento, mas pode ser agressivo também. É só lembrar do que fez George Martin no arranjo de Eleanor Rigby, dos Beatles”, diz. Agora, fazer sambas de João Gilberto exigiram de Jaques um estudo próprio. Na verdade, uma dissecação que já havia começado enquanto João gravava João Voz e Violão, em 2000, com direção artística de Caetano Veloso. Jaques iria colocar cordas no trabalho se João não optasse em lançar o disco cru mesmo depois de ouvir os resultados pré-gravados pelo produtor Moogie Canázio. “Não trabalhar com João é a grande ausência na minha carreira.”

Mas a experiência teve seu valor. Enquanto escutava os sambas de João no Japão, onde estava trabalhando com Ryuichi Sakamoto, ouvindo e transcrevendo notas das músicas que chegavam, o violoncelista decifrou o ‘código João Gilberto’: “Ele é uma máquina de samba”, concluiu. A música de João segue um padrão rítmico de sutileza quase imperceptível aos ouvidos desarmados. “Se ele começa em uma velocidade de 72 bpm (batimentos por minuto), por exemplo, vai reduzi-la a 69 bpm na terceira ou quarta vez que retomar a primeira parte. Isso, depois de passar pela segunda parte algumas vezes, cria um conforto ao ouvinte, uma sensação de quem volta para casa.”

Ao fazer canções cantadas por João em seu violoncelo, como Você e Eu, Tim-tim por Tim-tim e Eu Vim da Bahia, Jaques escreveu nota por nota do canto de João, algo que o garantiu colar na divisão do mestre. Ele teve também de driblar na mão as limitações do arco, que uma hora acaba e deve ser trazido na direção contrária, produzindo outro timbre. “O samba e o violoncelo não nasceram um para o outro. Eu tenho que fingir que o arco está só indo, ou só vindo.” Indo e vindo, Jaques conseguiu, além de dizer amém a seus deuses, um belo pretexto para tocar ao lado de João Gilberto.

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