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Isca de Polícia lança álbum inédito e faz show em SP

Banda não se perde da proposta de seu mentor, Itamar Assumpção

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Ele só pode estar ali, escondido em algum canto debaixo do calo do dedo indicador da mão esquerda de Paulo Lepetit, brincalhão nos dribles de pernas tortas da guitarra de Luiz Chagas. É um riso e uma raiva que se sente sem ver na voz indomesticável de Vange Milliet e nas provocações de Suzana Salles. Uma predileção pelo diabo aqui, evocada por Lepetit e Carlos Rennó, outra glorificação dos próprios erros ali, proclamada por Arrigo Barnabé. Presente sem estar, Itamar Assumpção, morto em 2003, reafirma a força de uma linguagem que definiu nos anos 80 assim que o grupo que criou em 1981, o Isca de Polícia, lança seu primeiro disco autoral sem o seu criador. Os shows serão dias 15 e 16, no teatro do Sesc Pompeia.

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A missão poderia ser inglória por algumas armadilhas na pista. Haveria legitimidade de se compor com o pensamento de Itamar sem sua presença? Criada nos anos 80, quando era erguido um cenário chamado Vanguarda Paulista, não estaria aquele idioma datado? As duas perguntas nem parecem ter sido feitas pelos músicos enquanto trabalhavam no novo repertório, mas podem ser levantadas por quem vai ouvi-los. E as respostas aparecem logo que a primeira música começa.

A linguagem do Isca não soa datada talvez por ter se recusado a escorar-se nas muletas de época. Musicalmente, Itamar desconstruía os caminhos que ele mesmo começava a pavimentar, criando um movimento ininterrupto de tensão e relaxamento, confundindo graça e contestação ou usando a primeira para atingir a segunda. Quando existia, a calmaria durava pouco, como se estivesse ali apenas para dar o gosto do quase pop, retirando o doce da boca da indústria pop.

Peixe grande. Jean, Marco, Susana, Lepetit, Vange e Luis Chagas: intactos Foto: Sergio Castro/Estadão

Ao seu lado do início e até o fim, Paulo Lepetit absorvia seu pensamento, colocando o contrabaixo na condução do processo criativo, guardando sustos para os próximos compassos. Quando viessem então os anos 2000 e surgisse o que se chamaria de “a nova música brasileira”, com seu núcleo criativo identificado em São Paulo, com nomes como Tulipa Ruiz, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci e Dani Black, a validade do Isca seria mais uma vez colocada à prova. Ele estaria em todos, de alguma forma, em corpo e alma.

Estariam os músicos do Isca pensando com suas cabeças ou com a cabeça de Itamar Assumpção? “Esse não é um trabalho saudosista”, define Vange Milliet em sua forma de dizer, com respeito ao mentor, que o valor do passado não pode ser uma âncora ao presente. O disco tem vida própria e seu idioma não é mais de um, mas de todos que um dia aprenderam a falar aquela língua. “Cada um dos músicos tem seus trabalhos próprios ou com outros grupos, mas é impressionante. Quando nos juntamos, fazemos esse som naturalmente, essa linguagem é nossa”, diz Vange, sob os olhares do baterista Marco da Costa e o guitarrista Jean Trad.

“Nunca nos acomodamos”, diz Lepetit. E, depois da morte de Itamar, a constatação é de que o Isca passou a fazer mais shows. “Foi quando começamos a desenvolver essa linguagem que temos hoje”, diz Lepetit. Há um fato sobre o qual parece haver alguma angústia represada. Itamar entrou em confronto direto com o meio artístico convencional, desafiando não só as gravadoras como outros agentes, como jornalistas, TVs, contratantes e artistas. Negro Dito não baixava a guarda, dizendo não para gravadoras, reafirmando sua má vontade com matérias jornalísticas e não titubeando em abrir mão de apresentações uma vez que suas exigências não fossem aceitas. Se não ganhasse o mesmo cachê de Gilberto Gil, por exemplo, não se apresentaria. A banda se ressentia. “Éramos todos jovens”, diz Paulo Lepetit. “É claro que queríamos tocar mais.”

Novidades. O disco que sai agora cruza colaboradores com histórias passadas diretamente ou não pelo trajeto da Vanguarda Paulistana. Péricles Cavalcanti é autor de Arisca; Arnaldo Antunes assina Dentro Fora com Lepetit; Meus Erros é de Lepetit com Arrigo Barnabé (com quem Itamar começaria tocando contrabaixo). Lepetit, Milliet e Ortinho fazem uma homenagem mais assumida em As Chuteiras do Itamar. “Não se afobe, o adversário é forte / Pra gente virar o jogo não vai ser mole não / Baixa o Garrincha aqui nesse Nego Dito / Driblo a torcida com meu sorriso / Meu patrocínio é o que eu digo, preste atenção”.

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Há uma espécie de exercício de alongamento no repertório do Isca. Zeca Baleiro não estava ainda na cena, mas poderia ter passado por ali, apesar do estilo de poesia mais direto, como mostra sua parceria com Lepetit batizada de É o que Temos, é o Melhor. “Você nunca sabe o que quer / Se quer viagem, casamento, bicicleta / É sempre tão difícil escolher...” Há ainda Atração pelo Diabo, de Lepetit e Carlos Rennó; Eu É uma Coisa, com Alice Ruiz; Xis, de novo com Arnaldo Antunes; e Itamargou, de Tom Zé. Tom é outro sócio de um clube que tinha como prerrogativa aceitar mentes que rejeitavam amarras. “Itamargou-ou-ou / Sem Itamar / Se a Isca se for / Vai escamar...”

Há mais material já pronto para o lançamento de um segundo álbum, programado para sair em seis meses. “É a tomada de carreira do Isca como banda autoral”, diz Paulo Lepetit, seu criador mais atuante. A inédita em disco Beleléu Via Embratel, de Itamar, já conhecida dos shows, será gravada pela primeira vez. E virão parcerias agora com Chico César, Alzira E, André Abujamra e Zélia Duncan. São os longos tentáculos do Isca, sob a eterna direção de Itamar Assumpção.Ideias no ar e arte dos encontros regeram o início da banda O sinal dos tempos para que o grupo que jamais foi desativado voltasse a estúdio veio depois de uma apresentação no evento Calorada da USP, em 2012. Assim que desceram do palco, os jovens estudantes da Universidade de São Paulo os cercaram: Quem eram? Como poderiam encontrar seus discos? Ah, não eram eles que cantavam no passado? Quem era esse Itamar Assumpção? Imediatamente, Lepetit começou a configurar seu projeto de retorno. Mandou mensagens e fez ligações aos amigos e passou a receber as letras de volta. A facilidade de se trabalhar comprovava o ecumenismo de uma linguagem que, ao mesmo tempo em que soava complexa, parecia caber em qualquer lugar.

A existência da batizada Vanguarda Paulistana, com direito a QG armado no teatro Lira Paulistana, em Pinheiros, não pode ser caracterizada como um movimento por não haver engenharia por trás. Seria mais o contrário, um anti-movimento de uma turma disposta a fazer a luta mais inglória e comercialmente suicida de todas: a de brigar contra um sistema em uma era em que não havia planos B e que não existia o brinquedinho revolucionário que o mundo conheceria como internet.

Sem gravadoras, cabia aos músicos criar suas próprias empresas e gerenciar suas carreiras. Os selos independentes lançariam seus materiais, mas pagariam o preço ao não contarem com uma distribuição nem próxima do razoável.

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A história se repetiria anos depois, em um contexto bem diferente. Da mesma forma com que o Premeditando o Breque cruzou propósitos com o Rumo, que Arrigo Barnabé entendeu-se com Ná Ozzetti ou que o paulista de Tietê criado em Londrina (PR), Itamar Assumpção, cruzaria com o Isca de Polícia (a junção do próprio Isca já seria fruto do milagre dos encontros de seres que vibravam na mesma sintonia), músicos brasileiros com ideias similares se uniriam sem arquitetura em São Paulo para a criação de um novo cenário. “Vejo que essa geração à qual eu pertenço faz muita troca com a geração anterior. Músicos consagrados gravam com os mais novos”, diz a cantora Tulipa Ruiz, filha do guitarrista Luis Chagas.

O saxofonista Thiago França, importante desenhista de uma sonoridade livre que caracteriza muitos trabalhos da música contemporânea de São Paulo, já falou, em recente entrevista ao Estado, sobre sua sensação de alívio ao sair de Minas Gerais para encontrar em São Paulo músicos que pensavam como ele. Sai tudo tão redondo que parece mesmo movimento. E, no sentido mais puro da palavra, é isso que é.ISCA DE POLÍCIA Teatro do Sesc Pompeia. Rua Clelia, 93. Telefone: 3871-7700. Sá. (15), 21h; dom. (16), 19h. Ingressos: de R$ 9 a R$ 30.