Irmão pouco conhecido de Joey Ramone lança biografia

Mickey Leigh é coautor de uma das mais detalhadas biografias da lendária formação que deu o pontapé inicial no punk

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Por Redação
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A garçonete do bar do hotel Sheraton, aos pés da favela do Vidigal, me aborda discretamente. Quer saber se o amigo gringo que está comigo à mesa num final de tarde de sábado é alguém famoso - como tantos outros hóspedes que ficam ali durante suas passagens pelo Rio de Janeiro. Ele tem cara de roqueiro sessentão. Bastante magro e muito alto, usa o cabelo escuro com alguns fios grisalhos na altura do ombro. A camisa preta está aberta até a altura do peito branco, onde ficam expostas correntes grossas com pingentes de caveira e crucifixo, calça justa e tênis All-Star desbotado.

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Não havia fã nenhum fazendo vigília na porta do hotel, um indício definitivo: meu amigo não era famoso. Mas a moça não errou o palpite tão feio. Na cédula de identidade do homem de meia idade com cara de rockstar está inscrito Mitchell Lee Hyman. É o irmão caçula de Jeffrey Ross Hyman, que ficou bem mais conhecido como o vocalista dos Ramones: Joey Ramone. 

Mitchell adotou um nome que em nada tem a ver com a banda. Mas a sua vida depois da morte do irmão, em 2001, por causa de um linfoma, é completamente indissociável dos Ramones. Mickey Leigh é coautor, ao lado do jornalista Legs Mcneill, de uma das mais detalhadas biografias da lendária formação que deu o pontapé inicial na América do gênero musical que é tido como o filho mais rebelde do rock. Eu dormi com Joey Ramone - memórias de uma família punk rock (Dublinense) tem a sua versão em português lançada este mês no Brasil.

Mickey gosta de dizer que não se trata de uma biografia do irmão, mas sim um livro de memórias da sua própria vida, que se entrelaça com a história de Joey e a da mãe dos dois, Charlotte, a família punk rock do título. Embora o vocalista dos Ramones é quem tenha feito sucesso e fortuna, o autor do livro foi roadie da banda por um bom tempo antes de se encher o saco de carregar equipamentos e testar afinações de guitarras para tentar a própria sorte - sem tanto sucesso quanto o irmão.

Os dois aprenderam a tocar juntos de forma autodidata e a banda foi formada por Joey e mais três amigos de Forest Hills, no subúrbio de Nova York, onde os Hyman moraram desde que a mãe deles se separou do pai - que não gostava nenhum pouco da ligação dos filhos com a música. 

Bom companheiro de Mickey, Johnny (John Cummings) logo tornou-se o líder intelectual da banda e queria que Joey, Dee Dee (Doulgas Colvin) e Tommy (Thomas Erdelyi) - a formação original dos Ramones - se comportassem sempre como ele bem entendia. Um pequeno ditador, que logo teve de dividir os holofotes perante os fãs e jornalistas para o estranho Joey, a voz do grupo. E um personagem de estatura altíssima (1,98m), desconjuntado, que usava o cabelo escuro na face para disfarçar seu rosto pequeno e assimétrico, de boca grande.

Durante o drinque no bar, Mickey passou mais de duas horas contando a história da fã brasileira dos Ramones que foi crucial para o lançamento do livro no país. Ela havia comentado um post no perfil do músico-escritor no Facebook. Oferecia ajuda para fazer contato com editores brasileiros. 

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“Não costumo responder mensagens no Facebook, mas me interessei”, lembra Mickey. Chamou-lhe atenção não só a ideia quanto a mulher. O autor lembrava, entre um gole e outro de vinho, como a moça mostrava um comportamento bipolar em relação a ele. Às vezes dava impressão de ter interesse numa relação, noutras o repelia. Algo como um pescador ocasional que joga a isca na água para brincar: o peixe, faminto, morde o anzol tão fácil que ela corta a linha para seguir com a sua diversão. A sequência se repete inúmeras vezes, à exaustão, até que o peixe morre engasgado com tantos anzóis na boca.

O livro em português vingou; o affair, não - para tristeza do quase-Ramone, visivelmente abatido ao contar a história como se fosse um adolescente em busca de um dos primeiros amores da vida. Meses depois, agora na véspera do lançamento do livro em São Paulo, ele ainda perguntaria para o publisher da Dublinense, Gustavo Faraon, sobre a moça. Disse que se sentia em dívida com ela. Gostaria de, pelo menos, poder oferecer um livro autografado para sua musa. “Convide-a para o lançamento. Ela pode levar o namorado, não me importo.” 

Antes do drinque no hotel naquele primeiro dia, Mickey havia ligado pelo menos três vezes durante aquela tarde para Faraon. Parecia estar carente, sem amigos, solitário numa cidade pouco receptiva. A longa história sobre um relacionamento que não parece nem ser digno desta alcunha serviu para nos manter com ele por mais tempo do que planejávamos. 

“Mickey é um cara muito agradável enquanto não tomou qualquer bebida alcoólica. Depois do primeiro gole, a relação começa a ficar mais difícil, repete a história várias vezes”, brinca Faraon.

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Em tempos de polêmica em torno de biografias não autorizadas no Brasil, o texto de Mickey sobre sua própria família é tão detalhista e “pegajoso” - no bom sentido - quanto o próprio autor numa mesa de bar. Isso porque ele não caiu na armadilha de tentar disfarçar passagens que o irmão provavelmente não teria nenhuma satisfação em ver relatadas. Como quando lembra da primeira namorada de Joey Ramone, que até então nunca havia conseguido firmar um relacionamento por mais que algumas semanas. 

Pam Brown era uma mulher muito atraente, a primeira deste nível a passar pela vida de Joey. E, segundo Mickey, tinha muita personalidade. Era decidida. Mas o vocalista dos Ramones ainda morava de favor no loft do amigo Arturo Vega, não lavava suas roupas, raramente tomava banho e era completamente descuidado, no início da trajetória da banda, com a aparência. Também não tinha dinheiro. O destino acabou levando a garota, certa noite, a se prostituir. 

“Eu achava que os Ramones iam dominar o mundo. Em vez disso, nós estamos por aí comendo sanduíches de tomate com cream cheese. De vez em quando, Joey conseguia algum dinheiro com sua mãe ou outra pessoa”, lembra Pam no livro. “Uma noite eu estava andando de volta para o loft sozinha, às 4h da manhã, bêbada. Um cara num Cadillac para o carro perto de mim e diz: ‘Te dou 50 dólares por um boquete’, Eu falei ‘OK’. Estava bêbada o suficiente para fazer aquilo. O cara me chamou de novo nas semanas seguintes, mas eu nunca contei para o Joey.”

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Para Mickey, Pam contou. E o irmão mais novo do astro que estava nascendo também soube de outro segredo que Joey ignorava: Pam teve um caso com o jornalista Lester Bangs, editor da revista de rock Creem. Bangs lhe ofereceu trabalho e a namorada de Joey foi a primeira a escrever um perfil sobre o músico, em dezembro de 1976. O título : “Servindo de babá para os Ramones: as crianças vão ficar bem?”

Claro que Joey não gostou do texto. Especialmente de um trecho que falava que andar pela rua com ele era como ter uma girafa de estimação e levá-la para uma banca de revistas para comprar a última edição de Mundo Zoo. “Ele é mais alto que qualquer um e ao mesmo tempo mais magro do que qualquer outra pessoa”, escreveu Pam no perfil. Ela ignorava que o apelido do vocalista dos Ramones na infância era Geoffrey Girafa. E aquele não foi um período muito agradável de sua vida exatamente por ser tão diferente de todo mundo. O bullying na escola e na vizinhança era inevitável. 

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Alguns dos fãs dos Ramones também não perdoam Mickey por ter exposto no livro este tipo de detalhes nada positivos sobre o vocalista da banda. Este grupo deve crescer bastante com o lançamento no Brasil. Está tudo lá nas 358 páginas da publicação: dos apelidos infância, a internação de algumas semanas num sanatório, o transtorno obsessivo compulsivo, até a reação à doença que acabou com sua vida. 

“Mickey trouxe o mito para o nível das pessoas normais e explicou como foi possível que ele se tornasse Joey Ramone”, diz Faraon. Pergunto ao autor o porquê desta necessidade de expor a memória do seu amado irmão mais ou menos como a sua primeira namorada havia feito quando o vocalista dos Ramones ainda estava vivo. A resposta tinha mais a ver consigo mesmo do que com o irmão. 

“Eu sentia que estava escondendo algumas coisas. Havia coisas do primeiro álbum, por exemplo, que ninguém sabia. Se eu não dissesse, todo mundo continuaria sem saber”, diz Mickey antes de ouvir outra pergunta óbvia sobre a provável opinião de Joey a respeito da biografia caso ainda estivesse vivo. “Eu acho que ele não ficaria feliz com o livro. Mas entenderia. Perceberia que tudo de ruim que escrevi a seu respeito balanceei com as piores coisas a meu respeito também. Sem contar que no livro eu falo sobre o meu maior crime, que me levou para a prisão: eu vendi maconha. Não tenho certeza se falei no livro, mas eu achava que estava fazendo um serviço para o mundo. No fim, talvez eu tivesse mesmo.” 

Não consta no livro a história de um quase-afogamento que Mickey protagonizou numa praia do Rio de Janeiro recentemente. Por algum motivo, eu comentara no bar do hotel que havia visto vários salvamentos na praia de Ipanema mais cedo - provavelmente numa tentativa de mudar o assunto do seu malfadado relacionamento. Em dias de ondas mais bravas como aquele, helicópteros dos bombeiros sobrevoam as praias cariocas tirando banhistas de apuros numa cesta. É algo bastante constrangedor. E o quase-Ramone lembrou que passara por este constrangimento meses antes.

“O desespero é tão grande que sair naquela cesta é um constrangimento até menor do que sair da água morto”, brinca Mickey. Ele lembrou que os salva-vidas ainda tentaram bater um papo para acalmá-lo, mas o abismo entre o português e o inglês impediu a conversa. Não tinha importância, o salvamento estava feito, o lançamento do livro no Brasil fora salvo. E o americano nunca mais ia deixar a cautela de lado quando entrasse no mar do Rio. 

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Fora d`água, no entanto, ele ainda tem muito a aprender sobre o jeitinho brasileiro. Numa de suas últimas viagens ao Rio, perdeu a carteira com todos os documentos e dinheiro. Passou boa parte do tempo da estadia envolvido em solucionar o problema. Na visita seguinte, teve seus dois cartões de crédito clonados num caixa automático do próprio hotel. “Todo dia, quando eu ia sacar dinheiro pela primeira vez, era avisado que tinha ultrapassado meu limite diário. Achei aquilo muito estranho e só fui entender mais tarde, falando com um funcionário do hotel que também tinha passado pelo mesmo problema”, conta. Perdeu US$ 4 mil antes de perceber o golpe.

Durante o período de lançamento do livro no Brasil, que inclui passagens por São Paulo, Americana, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Caxias do Sul, nenhum incidente foi registrado. Faraon, que acompanhou-lhe de um lado para o outro, acabou também fazendo o papel de babá do autor involuntariamente. “Ele é um pouco descuidado. Deixa a bolsa no chão, abre a carteira cheia de dinheiro no meio da rua”, explica o publisher. 

É um perfil que talvez não combine com o de homem de negócios do ramo de entretenimento que Mickey foi obrigado a assumir após a morte do irmão. O autor de Eu Dormi com Joey Ramone passou a administrar metade da marca Ramones e herdou a fortuna de Joey quando a mãe de ambos também faleceu, em 2004. Foi mais ou menos quando passou a escutar que vivia “sugando o cadáver de seu irmão” e outras coisas desagradáveis do tipo. “Eu tento não perder o meu sono com isso, mas é claro que não é algo legal de ouvir”

Seis semanas depois do fatídico dia 15 de abril de 2001 ele já teria uma mostra do que o futuro lhe reservava. Os Ramones fariam o primeiro show depois da morte de Joey. Mickey e a mãe pensaram que, se o concerto fosse apenas instrumental e o microfone ficasse sem dono ali no palco, tudo se tornaria uma bela homenagem. Johnny não gostou. Ele queria que a vaga de Joey fosse ocupada por algum vocalista famoso, tipo Rob Zombie, ex-White Zombie, ou mesmo Eddie Vedder, do Pearl Jam. 

“Aquilo não tinha nada a ver”, opina Mickey. Para a imprensa, os integrantes restantes dos Ramones - principalmente Johnny, que acabou morrendo de câncer de próstata aos 55 anos em 2004 - disseram que o plano de um vocalista famoso para substituir Joey no show não tinha dado certo por causa da pressão de seu irmão, que teria exigido ocupar o seu lugar. Mickey garante que aquilo não era verdade. Alguns fãs mais exaltados não quiseram nem saber. E ele recebeu as suas primeiras ameaças de morte.

“Nada na minha vida ficou melhor depois que meu irmão morreu. Eu preferia continuar devendo milhares de dólares para os meus amigos, mas ter o meu irmão comigo. Eu não quero parecer muito depressivo, mas é horrível. Eu choro o tempo todo. Escrever o livro foi muito difícil. Tive que fazer tudo que eu podia para superar: beber, fumar maconha. Emocionalmente foi muito difícil”, conta Mickey com aparente sinceridade. 

“Minha mãe morreu quando eu ainda não tinha acabado de escrever o livro. Eu tive que escrever sobre a sua morte pouco depois dela ter morrido por causa do deadline do livro. Eu não podia dizer ‘estou triste, esperem um pouco mais’. Não é como as coisas funcionam. Foi e é muito difícil. Mesmo dar esta entrevista, mesmo tocar as músicas do meu irmão. Ainda tenho problema para conseguir superar. Uma vez tocando “What a Wonderful World” num show eu não conseguia parar de chorar. Minha sorte é que estava suando tanto que ninguém poderia suspeitar. Mas houve momentos que tive de usar óculos escuros. Eu sinto muita falta dele.”

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Às vésperas dos 60 anos, o único resquício da família punk rock do livro é ele mesmo. O mais próximo que tem de uma relação familiar é com Linda Danielle, a excêntrica herdeira de Johnny - ela casou com o guitarrista depois de namorar por dois anos com Joey. Segundo Mickey, por muito tempo, o principal passatempo da dona da outra metade da marca Ramones era tornar a sua vida um inferno. 

“Ela contratou um advogado cuja tarefa primordial era ficar colocando empecilhos em qualquer coisa que a gente pensasse em lançar. Segundo eles, tudo estava fora das regras. Perdemos milhares de dólares por causa disso. Eu tinha de pagar um advogado para responder todos os questionamentos ou eu mesmo perdia dias inteiros com isso. Agora, finalmente, tudo está mais calmo. Recentemente, ela me ligou chorando, conversamos por umas três horas, e está tudo resolvido”, afirma Mickey.

A vida ficou mais confortável, embora ainda permaneça solitária depois do divórcio de Arlene, mulher que aguentou algumas barras ao seu lado, como quando foi preso por vender drogas. Viu-se obrigado a fazer isso para sobreviver durante um bom tempo. E é claro que não deu certo. 

Segundo Mickey, os Ramones fazem tanto sucesso agora quanto antes. Logo depois da morte de Joey e Johnny, as vendas de discos cresceram, apesar do fenômeno da pirataria e dos downloads gratuitos na internet. Na esteira da idolatria da banda, ele faz shows pelo mundo com sua própria banda, the New Yorkestra.

Num deles, no início do ano, no Rio de Janeiro, se viu na situação de aceitar ou não a companhia da atriz brasileira Mayana Moura no palco. Assim como eu, Mickey não sabia quem ela era. Então disse “não”. Mas a moça, bonita integrante de algumas novelas da Globo, insistiu. Apareceu num show, causou uma boa impressão - já mencionei que o fraco dos Ramones era as mulheres, não? - e cantou com o cara, que ficou muito satisfeito com o resultado. Outra de suas tarefas é promover uma tradicional festa de Natal em homenagem ao irmão em Nova York com celebridades de toda parte. Quase uma vida de rockstar. 

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