Instrumental brasileiro sem amarras dá o tom em festival no Copacabana Palace

Banda Magnética Intergaláctica, formada pelo produtor Kassin e duo entre Toninho Horta e Morelenbaum foram destaques

PUBLICIDADE

Por Julio Maria - O Estado de S. Paulo
Atualização:

O cenário era simbólico para um festival de música brasileira: o clássico hotel Copacabana Palace, embrenhado na história musical do País desde o surgimento da bossa nova. Sua grande sala de eventos no 2.º andar, com o ar condicionado a todo vapor, abrigou, de quinta, 1º, até a noite de sábado, 3, a 5.ª edição do Copa Fest, encontro idealizado pelo poeta e letrista Bernardo Vilhena e com uma programação centrada no virtuosismo instrumental: Eumir Deodato, Kassin e seu coletivo Magnética Intergaláctica, o grupo Shinkansen (de Toninho Horta, Liminha, Jaques Morelenbaum e Marcos Suzano), Pepeu Gomes e banda e o baterista Wilson das Neves. Gente de época e escolas das mais diferentes que, lado a lado, atualizam o mapa de um meio difuso e ainda visto como de pouca influência em audiências maiores.

PUBLICIDADE

Assim como o rock decretou sua liberdade e partiu para o tudo é possível desde a revolução digital de 2000, boa parte da música instrumental brasileira vista nestes dias também pode se considerar alforriada sobretudo de dois tiques nervosos adquiridos pelo início dos anos 90: ninguém é obrigado a seguir os padrões do jazz para ganhar notoriedade com um trompete nos lábios - um formato desgastado que consiste basicamente em apresentação de tema, improviso técnico e longo e retorno ao tema. Assim como, da mesma forma, não deveria ser necessário o pagamento de tributos a sons regionalistas na concepção de uma proposta coletiva de música brasileira. Não seria a negação de bases e origens que sempre serão as mais ricas do planeta, mas uma possibilidade de se pensar também fora da caixa.

De todo o elenco, quem deu as cartas desse jogo com a maior elegância foi o impressionante coletivo do produtor Kassin, batizado Magnética Intergaláctica, e o combo all stars de Toninho Horta e Morelenbaum. São dois grupos de intenções distintas, mas que se libertam das reverências e da verborragia fazendo uma música nova e autêntica. A criação de temas e arranjos e suas sessões rítmicas dão passos largos para fora dos padrões.

Kassin, um assumido nerd dos estúdios, é também uma figura ímpar quando está no palco. Ao lado de um trio de metais, um segundo guitarrista (o também flautista e cabeça técnica do grupo, Felipe Pinaud), do tecladista peso pesado Lincoln Olivetti, de um dos maiores baixistas dos novos tempos, Alberto Continentino, e do baterista Stephane San Juan, Kassin tem uma capacidade invejável de desaparecer. Sua guitarra é discreta, colocada para que os outros se sintam bem. É um garçom de alma generosa a servir seus parceiros com uma base de efeitos e climas que não parece estar em lugar algum e que, ao mesmo tempo, está em todos eles. Seu talento para sustentar o coletivo o faz um gigante e seu cardápio foi dos mais interessantes. Kassin mostrou temas que compôs em 2006 para a trilha de uma animação japonesa. Foram músicas lançadas em dois discos que jamais viram as prateleiras do mercado brasileiro. As linhas melódicas estão quase sempre na ponta dos metais ou na guitarra de barulhinhos estranhos de Kassin. Há bom humor rítmico, carisma orquestral e até tensão quando necessário. Pena se tratar de uma aparição relâmpago. "Minha vontade é de seguir com esse trabalho, vamos ver se conseguimos", disse o músico ao Estado após o show.

O coletivo Shinkansen tem algumas amarras a mais na percussão de Marcos Suzano e parece se sustentar no susto de improvisos que muitas vezes funcionam e em outras revelam a falta de ensaios. Porém, sua proposta é igualmente inovadora ao usar a categoria sobretudo de Horta e de Morelenbaum na confecção de uma temática oriental, como os belos temas Haikai e Sayonara in Naruto, outra vez distante das escolas clássicas. É um encontro de craques que só precisa de um pouco mais de tempo.

Pepeu Gomes, no sábado, veio com outras intenções. Fez o paredão mais pesado e rock and roll da série na noite em que a casa ganhou pista de dança em vez de mesas e cadeiras - embora Pepeu tenha feito música para ser vista, e não dançada. Pepeu ainda é um dos maiores guitarristas e o cara que, sem ser um tropicalista de formação, melhor resolveu o conceito proposto em 1968 por Gil e Caetano colocando Jimi Hendrix para dançar com Pixinguinha nas distorções de uma guitarra elétrica. Seu show é uma explosão de volume que só incomoda até o segundo tema, quando ninguém mais resiste ao convite para embarcar em sua viagem.

Wilson das Neves fechou a festa com o set mais dançante. Sua presença ali, depois de garotos que poderiam ser seus filhos e netos, também pareceu simbólica. O convite foi para que ele refizesse temas do álbum Som Quente É o Das Neves, de 1976, que trouxe a melhor versão instrumental para Berimbau, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, mas o baterista resolveu reforçar o calibre de seu arsenal com Zazueira, de Jorge Ben. Das Neves está acima de qualquer renovação e pena não estar mais nos palcos como homem de frente. Afinal, antes de todo o mundo nesta história, era ele quem mandava no pedaço. Aos 76 anos, pensando bem, ele continua mandando.

Publicidade

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.