Hi-Fi fecha as portas depois de 36 anos

Uma das mais tradicionais cadeias de discos de São Paulo encerrou suas atividades no sábado, ao fechar definitivamente a última loja, no Shopping Iguatemi

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Por Agencia Estado
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O ponteiro do relógio marcava dez horas da noite de sábado. As portas da Hi-Fi do Shopping Iguatemi, última de uma série de filiais existentes em São Paulo, seriam fechadas naquela noite, para não mais abrir. Era o fim do reinado da loja de discos que ditou tendências ao longo de seus 36 anos de vida e se transformou em um dos espaços musicais mais tradicionais da cidade. Nem falência, nem crise no mercado fonográfico brasileiro. Há cinco anos, Hélcio Serrano, o dono da rede, decidiu que não morreria trabalhando atrás do balcão. Aos 62 anos, Serrano queria curtir a vida. Começou a se organizar para colocar um ponto final na história da loja. "Dinheiro é muito bom quando você pode usá-lo, o acúmulo dele é uma paranóia de eternidade burra", ensina, com o sentimento de ter cumprido sua missão. "Paguei todos os meus fornecedores e funcionários, agora vou aproveitar a vida." Em 1956, Serrano ficou sabendo de um ponto que estava à venda na Rua Augusta, e lá abriu a primeira Hi-Fi da cidade. Não demorou para que o número 2.194 da rua se tornasse ponto de encontro de cantores, artistas e amantes da música em geral. Fazem parte da lista dos notáveis freqüentadores nomes como Raul Seixas, Elis Regina, Luís Gonzaga, Rita Lee, Chico Buarque, Raul Cortez, o artista plástico Antônio Peticov e o escritor Ignácio de Loyola Brandão. Então comissário de bordo, Serrano trazia de Miami os sucessos da parada dos Estados Unidos na Bilboard para vender em sua loja. Foi assim que o primeiro álbum gravado pelos Beatles chegou ao mercado brasileiro. "Quando ouvi os Beatles pela primeira vez, fui na hora até a gravadora Odeon (atual EMI)", conta Serrano. "E o que ouvi foi: ´temos uma fila de títulos na frente deles para colocar nas lojas´." Se hoje a maioria dos lançamentos são simultâneos ou demoram apenas alguns meses para chegar ao Brasil, na época eles aportavam aqui com anos de atraso. "Ela era sempre a pioneira, a única loja que tinha os principais lançamentos dos Estados Unidos", lembra o artista plástico Gustavo Rosa, um dos freqüentadores assíduos da Hi-Fi. "Todo mundo que queria comprar álbuns de qualidade ou ver gente bacana passava por lá." Mais do que uma loja de discos, a Hi-Fi ficou conhecida pelo seu caráter de vanguarda. Quem passava por lá ou se divertia ou ficava chocado. Rosa recorda-se de quando Serrano posou pelado em um pôster, apenas com um LP tapando o sexo e um chapéu da guarda inglesa. "Algumas senhoras ficavam indignadas, mas aquilo era muito engraçado." Cartazes como o que reproduzia a capa de Abbey Road, dos Beatles, e o Calendário da Gorda também fizeram história. O primeiro, trazia uma montagem do quarteto de Liverpool atravessando a rua e sendo observado por Serrano, de dentro da Hi-Fi. O segundo, um dos maiores sucessos da loja, trazia uma mulher gorda e uma tabela de calorias. "As pessoas entravam só para pedir o calendário", diz Serrano. "Quando eu tinha uns 10 anos, ir à Hi-Fi fazia parte do programa da família", diz o chefe Alex Atala, que na época morava em São Bernardo e sentia-se realizado só de passar em frente à loja. "Eu achava o máximo, ela era toda preta, supermoderna, o nome era lindo e sempre tinha algo diferente na vitrine." Ele lembra até hoje do dia 8 de dezembro de 1980, data em que uma coroa de flores ocupou a vitrine em homenagem a John Lennon, assassinado naquele dia em Nova York. Serrano também era responsável por promoções inusitadas até para os padrões de hoje. Numa delas, o cliente deveria levar consigo um elefante para ganhar 80% de desconto na compra. Filho dos imigrantes espanhóis Emília e Francisco Serrano, o proprietário de um dos ícones comerciais da cidade diz que foi um homem à frente de seu tempo. "Sempre fui visto como um extraterrestre." Segundo ele, até mesmo sua decisão de fechar a Hi-Fi é de vanguarda. "Todo mundo dá o golpe, não paga ninguém ou vai à falência. Eu não, fechei com a consciência tranquila." Sentado numa das confortáveis cadeiras dispostas no terraço de seu dúplex, sob um sol de 34 graus amenizado pelas folhas de bananeira de seu "jardim vertical", Serrano garante não estar sofrendo com sua resolução. "Quando apagamos as luzes, tive uma sensação de perda programada. Depois veio o alívio."

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