Há três séculos, a música mudou ao som do piano

Exposição que percorre os EUA e livro recém-lançado contam a história do único instrumento capaz de, por meio de arranjos ou transcrições, veicular qualquer tipo de composição; e que, segundo Bernard Shaw, foi tão importante para a música quanto a invenção da imprensa para a poesia

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Por Agencia Estado
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O concerto sou eu: a arrogante declaração do pianista, compositor, arranjador e superstar húngaro Franz Liszt, parafraseando o rei Luís XIV, encantou a platéia que se preparava para assistir ao primeiro recital de piano solo da história da música, em 1837. Tratava-se, claro, de um lance arrojado de Liszt em direção à conquista da posição de virtuose supremo do teclado em toda a Europa. Mas a questão não se esgota nesse gesto. Antes, a criação do recital de piano, pouco menos de 150 anos depois de sua invenção pelo italiano Bartolomeo Cristofori em 1700 em Florença, significou a consolidação do mais importante dos instrumentos musicais. A frase não é minha, mas de George Bernard Shaw. Em seu artigo, o dublê genial de dramaturgo e crítico musical diz que "a invenção do piano é tão importante para a música quanto a impressão foi para a poesia". Ou seja, o piano foi o primeiro e único instrumento capaz de veicular, em arranjos, transcrições, etc., todo tipo de música. Em outras palavras, tirou a música das elitistas salas de nobreza e colocou-a nas casas, ao alcance das pessoas comuns. Claro, o processo de massificação não foi instantâneo, mas entre o ano de sua invenção, 1700, quando se produziram artesanalmente um ou dois instrumentos, até meados do século 19, quando a produção anual já se contava às centenas de milhares, o salto foi muito grande. De fato, nestes 300 anos de gloriosa existência, o piano invadiu todos os escaninhos da vida pública e privada. E todo tipo de manifestação artística. Do cinema à música popular, da grande música de invenção ao jazz, ele sempre está presente. Até na ópera e no balé, em que não faz parte do espetáculo de gala, o piano é peça fundamental, ao menos nos ensaios, quando substitui a orquestra no acompanhamento a cantores e bailarinos. Livro e exposição - O Smithsonian Institute organizou, nos Estados Unidos, a exposição Piano 300 que está percorrendo o país, e promoveu, em conjunto com a editora da Universidade de Yale, a publicação de um belíssimo livro coletivo que combina as qualidades do livro de arte com as de textos pertinentes e adequados. Estamos muito longe, portanto, dos livros bonitinhos de textos superficiais. Melhor tributo o piano não poderia receber neste importante aniversário. O editor James Parakilas, ele mesmo musicólogo e professor no Bates College, reuniu um excelente time de especialistas que contam a história dos três séculos do piano em minúcias. Este artigo baseia-se praticamente no livro, que pode ser encomendado na Livraria Cultura ou então comprado pela Internet, na Amazon, por US$ 39,95. Ao inventar o "gravicembalo col piano e col forte" em 1700, Bartolomeo Cristofori modificou características básicas dos instrumentos de teclado usados até o início do século 18: no novo instrumento, as cordas não era mais beliscadas mas percutidas por um martelo de feltro; depois de percutida a tecla, o martelo volta imediatamente para trás, graças ao mecanismo de escape; para cada corda existe um abafador individualizado, comandado pelo teclado. Além disso, os pianos têm em geral dois pedais. O da esquerda, também chamado surdina ou "una corda", desloca todo o mecanismo, fazendo com que o martelo percuta apenas duas em vez de três cordas para cada tecla na região aguda; e na região média-grave, uma em vez de duas. O pedal direito faz os abafadores desencostarem das cordas, deixando-as livres. Às vezes existe um terceiro pedal: nos instrumentos de cauda, é o pedal sostenuto que torna possível prolongar uma nota ou acorde grave enquanto se utilizam ambas as mãos no registro médio e agudo. Nos pianos verticais, destinados a estudo, o terceiro pedal comanda uma cortina de feltro grosso que fica entre os martelos e as cordas, reduzindo substancialmente o volume de som. Trocando em miúdos: pela primeira vez era possível graduar os volumes e intensidades do som, construir legatos ou stacattos, fazer crescendos e diminuendos - como os violinos ou os cantores. Mas se Cristofori o inventou, o homem alcunhado como "pai do pianoforte" foi outro italiano Muzio Clementi (1752-1832). Ele era organista em Roma, sua cidade natal, quando um rico inglês chamado Peter Beckford "adotou-o" e levou-o para Londres. Depois de sete anos de estudo, Clementi começou na carreira musical como pianista e, investindo o que ganhou em novos negócios, terminou sua vida como dono de uma fábrica de pianos e editor de partituras. "Ele queria", diz James Parakilas, o editor do livro Piano Roles, "desesperadamente ser tão bom pianista como Mozart, tão bom compositor quanto Beethoven, mas só descobriu seu gênio real como fornecedor das condições para que as pessoas curtissem música em seus pianos em casa". Um gênio bastante intere$$ado, sem dúvida. Compositor crítico - Não é demais afirmar que Clementi foi um gênio de marketing. Em suas turnês, ele levava consigo um cravo e um piano, justamente para demonstrar ao distinto público as diferenças entre um e outro. Fez publicar sonatas prescritas tanto para cravo como para pianoforte, mas com muitas indicações de dinâmica que só poderiam ser executadas num piano - o que aguçava nos amadores a vontade de comprar um instrumento. Reprodução/AETela de Edgar Degas contida no livro Piano Roles, Three Hundred Years Of Life with the Piano Revistas - Clementi foi mais longe: escreveu métodos de iniciação ao piano e fez acordos com os principais editores de música, como Breitkof & Härtel, para publicarem suas obras. E mais: estimulou-os a criar revistas musicais. A imprensa musical nascia ali, em 1798, com a Allgemeine Musikalische Zeitung, fundada por Gottfried Christoph Härtel, o proprietário da editora Breitkof & Härtel, de Leipzig. Lance de gênio, mas eticamente condenável, de Clementi. Ele anunciava nesta e em outras revistas, que em troca comentavam elogiosamente suas publicações e avaliavam sempre favoravelmente seus pianos. Parakilas conta, à página 87, que "é desconcertante saber que, depois que o jornal publicou uma resenha altamente favorável a uma sinfonia de Clementi, a Bretikopf & Härtel enviou à Clementi & Company de Londres uma nota agradecendo a crítica... "para inserção no jornal musical que publicamos". Ora, o próprio Clementi escreveu uma resenha sobre sua sinfonia - e, claro, falou maravilhas dela. Como se vê, a corrupção não é só brasileira nem tem idade. Clementi pensava como um marqueteiro muito à frente de seu tempo e pode legitimamente ser chamado não de pai do piano, mas de pai da indústria do entretenimento, que na época girava exclusivamente em torno do piano. Com esta azeitada e poderosa máquina de propaganda nas mãos, ele começou a incutir no público a idéia de que havia boa música composta no passado, e que deveria ser executada - e que boas não eram necessariamente apenas as novas músicas. Insistindo com a produção de Haynd, Mozart e Beethoven, ele começou a criar o grande cânone pianístico que até hoje perdura. Os fabricantes de piano, como Steinway, os franceses Erard e Pleyel e Broadwood em Londres, entre outros, perceberam o potencial das atividades empresariais de Clementi. E foram atrevidos na primeira metade do século 19: Pleyel inaugurou a primeira sala própria de concertos só para divulgar seus instrumentos, e passou a patrocinar determinados pianistas. Rapidamente outros fabricantes fizeram o mesmo. A Steinway contabiliza hoje em seus anúncios 99% dos maiores pianistas em suas fileiras. Claro, sempre com a Bösendorfer em seus calcanhares. Em l817, Broadwood mandou de presente um instrumento para Beethoven, em Viena. E não é que o compositor adorou o mimo, a ponto de se perceber nas suas sonatas para piano daquele momento em diante maior sofisticação? Aliás, foi Beethoven um dos que mais fundo foram no aproveitamento dos novos recursos do piano. Gretchen Wheelock exemplifica que no quinto compasso do adágio da Sonata opus 110 há oito instruções escritas para o executante seguir. No meio da pauta e acima: "Adagio. Pedal. Tutte le Corde. Dimin, Ritardando. Una Corda. Cantabile". Abaixo: "Sempre Tenuto". Escolas - Circo do entretenimento pronto, a instituição do recital de piano solo por Liszt em 1837 coroou este processo praticamente industrial. Faltava, porém, uma fábrica para produção de virtuoses. Foi quando os conservatórios entraram em cena. O primeiro deles, de Paris, foi criado em 1795, ainda em plena Revolução, para abrilhantar as festas cívicas. Dirigido por Cherubini entre 1822 e 1842, transformou-se logo numa escola para formação de virtuoses. Marmontel foi seu professor mais duradouro: reinou entre as décadas de 30 e 80 do século 19. Outros conservatórios famosos: Praga (1811), Viena (1817) e o de Leipzig (1843), tocado desde o início por Felix Mendelssohn, que estabeleceu o currículo básico de três anos contendo teoria e história da música e canto, além do adestramento pianístico. Liszt detestava os conservatórios. Em suas aulas públicas, concentrava-se na interpretação. "A ginástica dos dedos, deixo para os pássaros de conservatório." A dinastia dos grandes professores, que começou com Marmontel e Clara Schumann, continua até hoje como principal usina formadora de grandes pianistas. É o charme artesanal que perdura e mantém seu perfume além e acima do tempo. Tentáculos - O século 19 assistiu à grande overdose do piano. Transcrevia-se de tudo. Czerny, que junto com Hanon, Cramer e outros formou o time dos pedagogos, transcreveu a abertura da ópera Semiramis, de Rossini, para oito pianos. A presença do piano era tão avassaladora que um crítico francês, Fétis, reclamou em 1827 que o piano estava marginalizando a música orquestral e de câmara com seus tentáculos onipresentes. Idiotices pululavam. Pra que transcrever para dois pianos uma sonata de Beethoven? Ou então fazer arranjos facilitados. A quem serviria? Claro, à indústria cada vez mais agressiva. Pianos verticais - os chamados de armário ou estudo - já se vendiam a prestações a perder de vista. A produção mundial, em 1910, andava pela casa dos 600 mil instrumentos. Hoje, quase um século depois, os números são praticamente os mesmos, só que agora, com uma participação bastante expressiva dos japoneses, Yamaha à frente. É lógico que não se contam os teclados eletrônicos, que só conservam a aparência do piano tradicional por uma questão sentimental e poética. Só isso. A riqueza de Piano Roles é tamanha que faltou falar da invenção do metrônomo, do aparecimento dos afinadores, de artigos primorosos falando do piano e a literatura (Austen, Checov, Flaubert, Tolstoi), o piano e o cinema (mudo e falado, de Casablanca a Howards End, passando pelo Piano de Jane Campion, além dos musicais da Broadway e da belíssima canção de Irving Berlin de 1915 intitulada I Love a Piano). Ah, e o blues. Você sabia que foi uma partitura para piano, The Memphis Blues, a primeira música publicada de W. C. Handy, o autor de Saint Louis Blues? E que na Internet há mais de 650 mil sites se você busca pela palavra piano? Ele se integra em qualquer lugar do planeta. Está na Chechênia devastada onde um soldado russo dedilha um piano abandonado (esta foto, originalmente publicada pelo The New York Times de 10 de fevereiro de 1995, está no livro, à página 350). E ainda conserva toda a sua simbologia na instalação Klavier Intégral de Nam June Paik, que está na página 365. Pode soar forte, mas esta poesia toda sempre esteve acompanhada do instinto comercial. Arthur Loesser, historiador do piano, diz que "a história do piano não coincide com o desenvolvimento do gênio musical; ela segue passo a passo o desenvolvimento da indústria e do comércio".

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