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Guilherme Arantes volta aos anos 80 com 'Flores e Cores'

Cantor usou a mesma instrumentação com a qual fez seus maiores hits no início da década de ouro da música pop para criar novo álbum

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

As portas das memórias de Guilherme Arantes ainda não se fecharam. Depois de Condição Humana, que havia sido seu mais recente disco com inéditas, em 2013, ele passou por uma espécie de regressão psicanalítica ao ver a vida passar em flashback na grande caixa que guardava lançamentos de 1976 a 2016, lançada no ano passado. Guilherme, ainda no clima revisionista, fez um documentário para a internet, no qual usava as histórias das músicas para narrar a própria vida.

Gulherme, que está lançando o disco Flores e Cores Foto: JF DIORIO/ESTADÃO

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Isso tudo, mais viagens pelo mundo e pelo Brasil que o colocaram em situações nostálgicas, serviram para que um disco novo não fosse exatamente o significado de inovação. Flores e Cores sai assim como um álbum que Guilherme poderia ter lançado em algum momento dos anos 80. Ele cria belas canções, banhadas por mantas de sonoridade radiofônica daqueles tempos (impossível não lembrar de Lincoln Olivetti e seus teclados mágicos), e, sem fazer esforço, vai até as próprias origens buscar a nova orientação.

“Essa história começou desde que eu encontrei um piano CP 70 em um site de vendas”, ele conta. Foi com uma peça dessas nas mãos que criou e gravou músicas como Deixa Chover, Perdidos na Selva e Cheia de Charme. Pelos finais dos anos 70, Guilherme acopla um pedal de efeitos flanger ao instrumento e consegue formatar uma característica de timbre que inundaria as FMs de uma geração. “Sim, foi com esse recurso que eu criei o ‘som do Guilherme Arantes’, algo muito parecido com o que fazia (o pianista e cantor americano) Billy Joel. E assim, entre o verão de 1980 e o de 1981, é inaugurado o pop brasileiro.”

O instrumento que Guilherme comprou recentemente, exatamente igual ao que ele tinha, veio dos Estados Unidos, Hollywood, e custou US$ 3 mil. “Quando chegou, senti que tinha até o cheiro dos anos 80, que essa década tinha voltado para as minhas mãos.” Guilherme se encheu de inspiração e fez as mesmas marcações nos recursos do instrumento que usava em sua primeira fase. Outros sinais chegaram para apontar que o caminho para seu novo disco poderia estar mesmo no passado. O produtor Marcus Pretto me pediu uma música para estar no novo disco da Wanderléa e eu mandei, também com esse clima. Depois, Paulo Miklos fez o mesmo e acabei enviando uma canção que me fez ter vontade de compor um novo álbum. Ele me deu essa vontade.”

Assim, o material começava a formatar um trabalho com dois lados de uma mesma moeda. Em uma mesma canção, ouve-se a nostalgia sonora, leve e colorida, e a poética humanista, contestatória e muitas vezes alarmante. Ele abre com A Árvore da Vida, com versos que declama na entrevista com certo orgulho. “A inocência é um bem maior / de um sentimento a se guardar / onde não floresce o mal / Tudo tem lugar.”

Semente da Maré parece tocar no ponto comum, cada vez mais revisitado, dos refugiados. Mas ele logo alerta o entrevistador. “Não é o mesmo refugiado dos Tribalistas”, diz, lembrando dos versos de Diáspora, uma das quatro músicas novas divulgadas há uma semana pelo grupo.

O refugiado de Guilherme é outro. Ele canta assim: “Não conheço mais qual país corresponde a qual lembrança / onde fui parar, o que eu fiz... / Duelo perdido, desde a tenra infância.../E o refugiado olha ao redor... / Sem ver semelhança”. Esse refugiado não é o que vem de fora, mas o que está dentro de cada um. “O meu refugiado é solitário, não está em uma barca com sírios, fariseus, cubanos e ciganos. Ele sou eu na Praça da República sem reconhecer meu próprio passado.” Se o Brasil não estivesse separado da Europa por um oceano imenso, ele pensa, estaríamos vendo ondas migratórias enormes de brasileiros sem esperança tentando vida nova.

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Mas o disco novo se chama Flores e Cores. Tem a capa e o encarte cheios de vermelhos, verdes e amarelos gritantes e uma caricatura de Guilherme com um semblante leve e sereno. Parece um conflito, mas ele diz que não. A porção otimista do álbum, além de estar na sonoridade grande e efusiva, está na sensação de Guilherme ao fazê-lo. Ele, diz, celebra a simplicidade que a mulher com quem está junto há 15 anos o faz voltar a perceber. “Acabamos nos casando no ano passado, em uma segunda-feira, uma cerimônia bem simples. Ela me trouxe essa pureza, um jeito simples de perceber as coisas. E essa pureza é inspiradora para mim, que já não estou mais na zona de combate”, conta, sorrindo.

Sua voz, ele aponta, voltou a pegar os agudos de uma maneira que não fazia mais. E a explicação de Guilherme para o feito é curiosa. “O clima da Bahia, onde eu moro.” Ele diz que o calor com a umidade do ar faz com que a sensação seja a de que se está “fazendo uma inalação o dia todo”.

A demolição das convenções dos anos 80 parece ter libertado os anseios artísticos do cantor. Se antes ele fazia música pensando em criar hits para tocar nas rádios, e fez isso muito bem por quase uma década, agora dá sinais de que o pensamento criativo não passa mais por esse filtro. Sodoma e Babel pode ser um exemplo. Ela foi criada em 1971 (as outras duas do disco saídas da gaveta foram ‘Happy Days’ e ‘Meu Jardim do Éden’, de 1969) e jamais gravada porque sua companhia entendeu que havia ali um potencial de impacto comercial. De fato, a harmonia segue por modulações progressivas demais para a cabeça do pop, algo que faz a música precisar da segunda audição para começar a se revelar.

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Se quisesse mesmo um hit, Guilherme domaria mais os caminhos que tem encontrado para suas melodias. Ele está progressivo, tem ainda o DNA do seminal grupo Moto Perpétuo, e, surpresa, diz que sim, ainda pensa em criar hits. “Eu ainda penso em tocar em rádios por um motivo: a geração que me escuta está no trânsito. Ninguém vai me ouvir mais no Spotify. Vão sim ouvir as rádios adultas contemporâneas, tipo Alpha, Nova Brasil, Antena 1, emissoras especializadas em flashbacks. Eu ainda preciso disso.”

Mas como fica, com a modernidade que pulveriza tudo, o artista criado em uma era em que todos cantavam suas músicas, em que ele mesmo ouvia suas canções nas rádios cinco vezes ao dia, em que sua produção era esmiuçada do encarte à última faixa? Fazer discos hoje para poucos ouvintes, para ser mostrado em três dias de shows em alguma unidade do Sesc e depois desaparecer não lhe dá um sentimento de vazio, de solidão? “Veja, nós vivemos em um mundo de desperdícios. O que conhecem de Beethoven sem ser o tchan, tchan, tchan, tchan?” 

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