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Gilberto Mendes teme extinção da música erudita

Compositor que coordena o Festival Música Nova, que começa amanhã, em Santos, receia que a música pop tome ainda mais o espaço das criações eruditas

Por Agencia Estado
Atualização:

O compositor Gilberto Mendes, nascido sob o signo da modernidade no ano de 1922, continua tendo compromisso total com o mundo contemporâneo. Pelo conjunto da sua obra, ele ainda é o principal representante da música contemporânea e de vanguarda no Brasil. Embora seja fundamentalmente um compositor, Mendes tem, entre as suas atividades, a importante atitude de manter o único festival no País de música nova, em Santos (sua cidade natal, no litoral de São Paulo), que reflete as várias correntes do vanguardismo, desde 1962. "Não quero hoje outra rotina que não seja a da composição. Levo adiante o festival por acreditar quanto ele é necessário para a manutenção e informação sobre a vanguarda. Mas não sou empresário: nada ganho com ele", afirma. "Há uma possibilidade de a música erudita desaparecer e isso muito me preocupa. Gosto muito de música popular. Mas tenho uma birra com ela do ponto de vista de categorias. Ela está tirando todo o espaço da música erudita, sobretudo essa de vanguarda que se tornou difícil para o grande público." A visão de Mendes soa fatalista, entretanto, o compositor coloca em questão um problema maior: o erro de avaliação da intelectualidade brasileira que, segundo ele, tem esquecido a música erudita nacional. "Autores populares como Tom Zé, Hermeto Pascoal e Caetano Veloso, por exemplo, são elevados como os compositores eruditos de hoje por essa intelectualidade brasileira", argumenta. Mas um segmento anula o outro? "Não, mas isso se tornou um reflexo da luta de classe do marxismo, entre duas categorias profissionais: a erudita e a popular. A erudita não teve privilégios aqui, nem um público numeroso. Não interessa para a grande mídia. Não dá dinheiro. Já a popular, sim e estão na mídia por decorrência disso. Há exceções como Caetano, Chitãozinho e Hermeto. São excelentes músicos, não estou discutindo qualidade musical", completa. Mendes não fala dessas coisas por rancor (até porque tem prestígio nacional e internacional). Mas acha incorreto afirmar que os sucessores de Villa-Lobos são Edu Lobo e Tom Jobim. "E Camargo Guarnieri e Francisco Mignone, o que são? E Jorge Antunes e Almeida Prado? Veja, não se fala dessa produção e ainda a substitui pela popular, como se tudo de erudito se resumisse a Chico Buarque e Caetano Veloso. Compositor de música popular compõe melodias, um outro vem e arranja, uma outra pessoa vem e orquestra, quando necessário. Porém, o compositor erudito faz absolutamente tudo dentro de uma forma altamente complexa e elaborada. São mundos diferentes. Há, sim, uma relação entre esses mundos, um influencia o outro. Sempre houve uma troca entre o popular o erudito, mas estruturalmente são completamente distintos", afirma. A leitura da apresentação de Stockhausen, que veio em junho ao Brasil, é um exemplo dessa avaliação equivocada. "Colocaram Stockhausen no mesmo pé que os DJs. Comparar música eletrônica de pista à música eletrônica de pesquisa, pelo amor de Deus, isso não se faz. O DJ é um animador de baile. Pessoas que ficam famosas em cima da música de outras pessoas", analisa ele, que, nesse assunto, está um pouco por fora e ainda tem a imagem de que DJ é aquele que toca música em rádio e reproduz discos em festas. Mendes, nesse aspecto, desconhece a nova criação da música eletrônica, hoje gestada no seio pop. "Não quero fazer hierarquia elitista, mas isso existe. Não é preciso dizer se uma música é melhor ou pior, mas que são diferentes. Todos queremos o mundo da diversidade e adversidade." Para Mendes, o experimentalismo foi praticamente esgotado pelo surrealismo e dadaísmo. "É importante lembrar que todo esse experimentalismo da música popular, pelo menos 60 anos antes foi feito na área erudita. Até o que a gente fez nas nossas gerações, em 50 e 60, no fundo, já tinha sido feito. O dadaísmo e o surrealismo esgotaram a vanguarda, realizaram algo absurdamente profundo. E nós desenvolvemos aquelas idéias. Então quando um compositor popular vem com essa coisa de criar instrumento, usar panela, isso é de uma precariedade. Faça música popular, bonitas canções", observa Mendes, que não considera essa aproximação do pseudo-experimentalismo benéfica ao público por achá-la enganosa. "Na teoria da informação, há duas faixas da comunicação: a persuasiva, de massa; e a aberta, em que o artista faz o que bem entende, inventa signos novos, sem menor significado para a massa e que terão significação com o tempo. Essa é uma diferença crucial", diz. Obra - Mendes define hoje sua música como promíscua: "O lado experimental, de invenção, e vanguardístico de minha obra está mais, penso eu, na manipulação que eu faço de significados musicais muito diferentes e que resulta numa música altamente semântica. Eu a construo a partir da química de linguagens variadas: de nossos dias, da antiguidade, de culturas exóticas, linguagens eruditíssimas ou pop, muito artísticas ou linguagens menores, até vulgares, dentro de uma tradição barroca e eclética da arte americana, sobretudo a latino-americana. Uma música de certo modo promíscua, mas que me torna, acredito, um compositor rigorosamente de meu tempo." Segundo ele, durante uns 30 anos se fez uma música de grande unidade - a dodecafônica -, como o barroco. "Foi um movimento forte de hegemonia. Hoje, todos mudamos. Havia uma tendência para manter um estilo e uma técnica, mas hoje não há isso." Mendes é cria do mesmo paradigma contempoâneo de Pierre Boulez e Stockhausen. Após uma longa viagem à Europa, em 1959, quando passou pelo Festival da Juventude em Viena, o compositor encontrou partituras que mudaram o curso de sua linguagem musical, ao conhecer as obras de Stockhausen e dar-se conta de que iniciaria, a partir dali, a sua estreita ligação com a Neue Musik. O passo mais importante para a fundamentação da vanguarda brasileira foi a criação do Manifesto Música Nova, em junho de 1963, quando ele, Damiano Cozzella, Rogério e Regis Duprat, Sandino Hohagen, Júlio Medaglia, Willy Correia de Oliveira e Alexandre Pascoal colocaram a intelectualidade para pensar. Quem fará isso de novo?

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