Gilberto Gil coloca a oralidade dos sertões ao lado dos letrados clássicos da ABL

Não se trata mais de ser literatura, música ou poesia: obra do artista é uma ideia transformadora de vidas e formadora de caráter, fazendo e desfazendo crenças

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Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Antes da honrosa insígnia que a Academia Brasileira de Letras agora lhe outorga, Gilberto Gil já havia atingido o lugar dos sobre-humanos não por um suposto alto letrismo para intelectos elevados, mas por tudo o que criou justamente nos campos livres da não academia classista. Gil fez a ideia poética mais profunda pulsar e se tornar viva ao inventar lugares factíveis feitos de matérias antes antagônicas e inconciliáveis. São dele, e agora nossos, o sertanejo científico, a indignação doce, a fé cética, a tecnologia do barro e o amor que também é feito de vãos. Por ser na escrita melhor do que na fala, os jornalistas riram quando ele disse em uma coletiva de imprensa em São Paulo: “Eu falo sempre que tudo é uma coisa só”.

Gilberto Gil Foto: Fernando Young

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Criado na oralidade de Dorival Caymmi, João Gilberto e Luiz Gonzaga, sábios letrados pelos ouvidos, Gil intelectualizou-se antes de se tornar um mediador dessas vozes a partir dos tempos tropicalistas. Mas sua presença na ABL produz, mais do que o efeito de justiçamento e equilíbrio racial, uma admissão um pouco mais cara às academias. Uma voz não oficialmente literária pode estar entre nós? Nem sempre, diz a história. Assim que o nome de Bob Dylan foi anunciado como vencedor do Nobel de Literatura, em 2016, o autor peruano Mario Vargas Llosa, ele também um Prêmio Nobel, levantou-se cheio de instintos de preservação: “Este deve ser um prêmio para escritores, não para cantores”. Mandou mais alguns impropérios e fechou: “Quem sabe no ano que vem não premiam um jogador de futebol”.

Apesar de não ter um livro escrito de próprio punho, sozinho, como Caetano Veloso, Gil teve 400 de suas músicas organizadas na publicação Todas as Letras, que Carlos Rennó fez para a Editora Companhia das Letras. Uma farta coleção de poemas que, claro, não responde fisicamente por uma obra literária machadiana. Mas, por mais que a discussão insista em voltar, é bom rebater que a falta de publicações nunca foi um impeditivo aos conscritos. Além da atriz Fernanda Montenegro ter sido recebida recentemente com o louro dos imortais, a ABL já teve entre seus integrantes não escritores o médico Oswaldo Cruz, o inventor Santos Dumont e o diplomata Barão do Rio Branco.

O sentido maior da literatura de Gil, assim como o de Fernanda, está na fala, no gesto, nas ideias e em um amor transbordante ao outro e ao mundo. Algo que, como os feitos de Dylan, não se trata mais de canção, de poesia e nem mesmo de literatura, mas de ação.  Suas letras pularam para a vida e a transformaram, interferindo em nosso caráter, nossas formações, nossas crenças e nossos comportamentos. Estrelas que eram só estrelas podem surgir no céu “cada vez que ‘ocê’ sorrir”. Vazios que eram tristezas são agora lamentos sertanejos localizados dentro de qualquer um, da cidade ou do campo, que carregue um sertão de si. 

Confesso que deixei de ter medo da morte depois de ouvi-lo cantar que “não terei pé nem cabeça, nem fígado, nem pulmão / Como poderei ter medo, se não terei coração?”. E a confiar mais no mistério do que no próprio Reino dos Céus depois que Gil alertou em Se Eu Quiser Falar com Deus que, ao final de tudo, pode ser que apareça nada, nada, nada e nada do que eu pensava encontrar. 

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