'Breath by Breath', do pianista Fred Hersch, surpreende com jazz espetacular

Talento do jazz, pianista propõe novo olhar para a música de câmara

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Acompanho há décadas o pianista norte-americano Fred Hersch, hoje com 66 anos. Músico completo, vive agora as delícias da plena maturidade. Foi um dos primeiros a enfrentar a Aids, décadas atrás, e vencê-la tomando 33 comprimidos diários, como confessa em sua autobiografia Good Things Happen Slowly (As Coisas Boas Acontecem Devagar, em tradução livre), de 2017. 

O pianista norte-americanoFred Hersch Foto: Erika Kapin

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Fez de sua doença uma bandeira pública contra o preconceito. Teve sólida formação clássica. A epígrafe que escolheu dá a medida de seu refinamento. São versos do poeta americano Walt Whitman, traduzidos livremente: “Depois que o deslumbramento do dia se foi / Só a escura noite mostra aos meus olhos as estrelas /Após o clangor do órgão majestoso, ou coro, ou banda perfeita,/ Silencioso, contra minha alma, move-se a sinfonia verdadeira”. Órgão, coro, banda, sinfonia. A música para ele não tem adjetivos, desde que possua dois atributos: a qualidade de invenção; e o gosto pelo risco, pelo perigo, razão de sua paixão maior, o jazz: “Eu amo jazz – e o grande jazz tem que ter uma pitada de perigo, mesmo que não soe selvagem ou louco. Às vezes, apenas mudar um pequeno detalhe no momento pode abrir uma porta musical”. Mas, confessa o pianista, também adora rhythm’n’blues e música brasileira. Gravou um belo álbum com Luciana Souza em 2003.

Ele lançou um dos álbuns mais interessantes de piano solo destes anos pandêmicos, Songs from Home, em novembro de 2020. Música improvisada, densa. É por isso que a maior estrela do piano clássico no planeta hoje, o russo Igor Levit, de 34 anos, estreou em recital no Carnegie Hall as Variações Sobre Uma Canção Folclórica (Shenandoah), de Hersch. 

O seu mais recente álbum, Breath by Breath (Palmetto Records), de 2022, propõe um novo olhar para a música de câmara, gênero eminentemente clássico. Seu trio de jazz – onde toca ao lado do contrabaixista Drew Gress e do baterista Jochen Ruckert – contracena com o Crosby String Quartet. 

O disco

Respirar juntos é um requisito essencial para a boa prática da música camerística. O título do álbum remete a esta interação difícil de se obter. Em entrevista à revista Downbeat de fevereiro passado, Hersch disse que não queria as cordas apenas fazendo o colchão harmônico para seus improvisos, como em geral acontece quando se juntam músicos clássicos com populares. Ele é que improvisou estimulado pelo que escutava do quarteto no fone de ouvido, no instante da gravação em estúdio. Seus arranjos evitam, portanto, a grandiloquência das cordas quando aplicadas ao jazz e às músicas populares em geral. O resultado é espetacular – jamais sentimentaloide. Soa íntimo, tão íntimo como uma excelente música camerística. Não estamos diante de um trio piano-contrabaixo-bateria de um lado; e de outro um quarteto de cordas. Temos música para um septeto. Ela soa orgânica, um milagre quando se pensa que os grupos clássicos camerísticos levam anos e anos para “respirar” juntos e conseguir realizar a façanha de soarem como um só organismo e ao mesmo tempo mantendo, cada um, sua voz própria, seu DNA artístico, digamos.

Composições

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São ao todo nove composições do pianista. Algumas, entretanto, destacam-se. É o caso de Pastorale, tema que registrou sozinho, no seu álbum solo de 2020. Naquela versão solo, ele constrói crescendos e decrescendos sutis, tem um sentido notável da frase musical. Tudo regado a uma sonoridade aveludada. Bem, falei até agora da versão solo. A versão para septeto ora lançada inicia-se no piano solo e na altura de 40 segundos entra o contrabaixo.

A partir de 1’18 entra a bateria e 12 segundos depois as cordas, em princípio esparramadas, convencionais. Exposto o tema em tutti, ao 1’51 as cordas do quarteto começam a tocá-lo, só que em pizzicati (cordas pinçadas com os dedos). Aos 2’32 o piano em staccato “pinça” as teclas do piano como se estivesse pinçando as próprias cordas, no interior do instrumento. Aos poucos as demais cordas se juntam, sempre em pizzicati até os 3’13, quando o trio de jazz se afirma. Descrevi apenas metade da versão, que tem 6’10. Por aí dá para perceber o nível de sofisticação. Esqueci de dizer que aos 4’25 o quarteto finalmente toca com seus arcos, convencionalmente, o tema, logo seguido pelo piano de Hersch.

Surpresas criativas deste tipo se repetem no álbum todo, uma joia na extensa discografia do pianista.

Breath by Breath - Fred Hersch

US$ 15,98 (CD) e US$ 17,99 (vinil, importado)

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