Festival Mimo usa igrejas históricas para sediar shows

Evento acaba acertando alvo que não mirou: o da tolerância religiosa

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Por Julio Maria
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Santa Ana, São Miguel e Santo Antonio não parecem nada abalados. Seus olhares misericordiosos observam a tudo com placidez mas sobriedade, como se advertissem os fiéis da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de que ali, por mais que a vontade de sair pulando se manifeste, é o espírito que deve ser elevado. O padre não veio. Ou, se veio,está na plateia. O sacerdote é um jovem alto, moreno, cabelos de anjo barroco e apresentado como "o Jimmy Hendrix do bandolim." Os santos não se assustam, Hendrix também era filho de Deus. Hamilton de Holanda, acompanhado por três fiéis coroinhas que seguram baixo, bateria e violão, fará um culto de limpar a alma, digno de qualquer preceito cristão.

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A reza de Hamilton segue um rosário de choros e maxixes com força para derrubar muros que por séculos dividiram a Igreja Católica de culturas consideradas pelo Vaticano como pagãs. Há menos de cem anos – que o diga Pixinguinha – maxixe na Igreja seria caso de penitência das bravas. Fora delas, caso de polícia. A noite em que o altar virou palco e o samba rezou se deu no último sábado, em Ouro Preto, Minas Gerais, durante o festival de música instrumental Mimo, que chega neste fim de semana a Olinda, Recife e João Pessoal. Idealizado e produzido por Lu Araújo, o projeto está em sua 9ª edição e tem como charme maior fazer de igrejas e catedrais históricas o cenário para apresentações de músicos do Brasil e do mundo, sobretudo com intenções instrumentais. As atrações de hoje em Olinda vêm de Portugal, com show de Maria João e Mario Laginha no Seminário de Olinda; de Cuba, com o jazz de Chucho Valdés na Igreja da Sé; e dos Estados Unidos, com Arto Lindsay acompanhado pela Orquestra Contemporânea de Olinda na Praça do Carmo. João Pessoa e Recife também terão suas atrações.

Ao transpor a logística de shows pop para dentro de templos religiosos, o projeto acerta em alvos que havia e em que não havia mirado. O mais visível é o ato de fazer com que os shows gratuitos democratizem o acesso de turistas mas também de plateias locais. Sempre há duas filas enormes em frente às igrejas: uma delas entra e a outra espera para saber se sobrará lugar.Outro fato é o de levar nomes de peso a cidades que raramente os veriam se não fosse a estrutura de seu patrimônio histórico – algo que por si só viabiliza o projeto em qualquer outra região histórica do País.

Mais nas entrelinhas, a música que se faz sob os pés das cruzes e dos anjos de Aleijadinho é um acontecimento que fica mais rico quando observado pela lente da História. Ver gente como o pianista Philip Glass, o percussionista Cyro Baptista, o jazzista McCoy Tyner e o bandolinista Hamilton de Holanda armar seus palcos em altares de 300 anos é a vitória de manifestações artísticas que um dia foram proibidas, e em alguns casos execradas, pelos religiosos. Não que os últimos bastiões tenham sido derrubados. "Rock não poderia ser. A música deve ser uma fonte rica de evangelização para elevar a alma", diz padre Marcelo Moreira Santiago, pároco há três anos da Igreja Nossa Senhora do Pilar. Mas qual seria mesmo o problema do rock? "A igreja deve receber música que suscite sentimentos bons, e não ódio, raiva ou banalização da sexualidade."

Lu Araújo evita colisões. Tom Zé, por exemplo, roqueiro disfarçado de tropicalista que anda abrindo seus shows usando um rabo sabe-se lá de quê, fez sua aparição em um palco da Praça Tiradentes, e não em uma catedral de Ouro Preto. "Nunca houve reclamação dos religiosos, isso é muito bacana", diz Lu Araújo. O que não quer dizer que acidentes não ocorram. Ao ensaiar para sua apresentação na Igreja da Sé, em Olinda, Egberto Gismonti arrastou o piano sobre a lápide onde estão os restos mortais de Dom Helder Câmara. "Olha a lápide, gente!", gritou Lu. Egberto ficou congelado. Em 2007, a produtora quase caiu de costas ao ver a imagem de Cristo coberta por um pano para a apresentação de um DJ. O espanto foi mais seu do que dos religiosos. Hermeto Pascoal, com a espalhafatosa Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, chamou sua plateia para dançar coco sobre o altar. E o pianista cubano Yasek Manzano não se intimidou ao escalar uma vistosa bailarina de vestido curto para ornamentar sua apresentação.

Foi às custas de muita vigilância que a Igreja Católica, sobretudo no pontificado do Papa Gregório, entre os anos 590 e 604, arquitetou a unificação de suas práticas religiosas e musicais e, consequentemente, as bases nas quais surgiriam a música erudita. Depois de já iniciada por outras lideranças, a reforma cristã foi finalizada e implementada por Gregório, que "limpou" os cantos de escalas com acidentes mais, digamos, sedutores, como o intervalo de segunda maior da escala menor harmônica e o trítono, um outro intervalo com uma distância de três tons inteiros entre uma nota e outra que denotava tensão. "Os padres diziam que este intervalo simbolizava o demônio na música", diz o maestro, compositor e professor de História da Música, Julio Bellodi.

 

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