Festivais independentes de música propõem novo olhar aos clássicos

Encontros abordam a música de câmara como caminho profissional e para a difusão do gênero

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Por João Luiz Sampaio
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Um sítio dedicado a estimular o contato do visitante com a terra e o cultivo de alimentos; uma antiga casa de fazenda; uma plantação de café; um píer de madeira, contemplando as águas tranquilas de um lago. Não são paisagens associadas normalmente à música de concerto – mas têm se tornado cenários de novos festivais e encontros que, nascidos da iniciativa dos artistas e à margem da atividade de grandes e tradicionais instituições, propõem a partir do trabalho com jovens instrumentistas um outro olhar sobre o fazer musical – e a relação com o público.

Jovem músico no festival SeConDe realizado em 2017 Foto: Gustavo Ippolito

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“Poder sair de uma grande cidade e sua rotina é algo que favorece de cara a troca de ideias e de experiências, que se dá de forma mais natural. São 20 alunos, que vêm de culturas diferentes, professores diferentes, e, além de ter aulas, acabam compartilhando frustrações, ideias, valores”, diz o contrabaixista Gustavo D’Ippolito, brasileiro radicado em Viena idealizador do SeConDe, Seminários para Contrabaixistas em Desenvolvimento, que nasceu em 2016, em Bragança Paulista, e prepara sua segunda edição para julho deste ano.

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O Ilumina, que em janeiro realizou sua terceira edição em uma fazenda em Mococa, no interior de São Paulo, compartilha noções semelhantes. “O nosso sonho era construir uma comunidade liderada pelos músicos, baseada em novas ideias relacionadas à música clássica – inclusão, igualdade e força criativa –, na qual o artista pode ousar e onde há aproximação entre as diferenças”, explica a violista americana Jennifer Stumm, criadora do projeto. 

“A convivência entre os professores, alunos e palestrantes em tempo integral provocou um tipo de interação interessante”, contam os violistas Pedro Visockas e Gabriel Marin, que ao lado de Renato Bandel, Alexandre Razera e Roberta Marcinkowski promoveram em janeiro, em um sítio na região de Piracicaba, o 1.º Encontro Campestre de Violas. “Nossa proposta vem ao encontro de uma reflexão bastante atual no cenário da música de concerto, que é o que podemos fazer para aproximar as plateias e despertar um interesse legítimo naquilo que fazemos. No encontro, todos se sentiram contagiados por algo muito importante nesse processo, que era atmosfera de alegria em aprender, ensinar e tocar”, explicam ainda.

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Sentidos. D’Ippolito deixou o Brasil há 20 anos, rumo à Alemanha. Acabou por se estabelecer na Áustria e é músico da Volksoper, além de tocar como convidado na Orquestra Filarmônica de Viena. Nos últimos anos, ele conta que começou a sentir o desejo de criar algum projeto que “fizesse sentido” no contexto atual. “Já existem muitos festivais com centenas de alunos. O que eu queria era algo com ênfase no contato humano, uma espécie de retiro musical. E, além do estudo do instrumento, oferecemos palestras e conversas sobre carreira, sobre a postura ética do músico, suas responsabilidades e como ele deve se colocar dentro do mercado, encontrando seus espaços.” A própria organização do evento serve de exemplo: para que a segunda edição aconteça, foi criada uma campanha de crowdfunding no site vakinha.com.br, onde é possível contribuir com diferentes quantias.

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“Ao lado dos colegas de todo o Brasil, estamos imersos no mundo do contrabaixo, dividindo questões técnicas e de interpretação, reforçando a solidez de boas tradições, mas também abrindo portas para novos conceitos”, diz a contrabaixista Ana Carolina Lima de Almeida. Nascida em Turmalina, no interior de Minas Gerais, onde começou na música na banda da cidade, hoje, estuda na Suíça. Ela participou do primeiro SeConDe antes de mudar-se para a Europa, que ela define como uma experiência transformadora. Antonio Tertuliano concorda. Natural de Pernambuco (integrou a Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque), ele hoje estuda na Academia da Filarmônica de Israel, em Tel-Aviv. “Por mais clichê que possa parecer, sou abençoado por ter saído de uma comunidade que não me oferecia muitas oportunidades e hoje estar aqui. E nesse caminho, o SeConDe, pelas aulas e pelas conversas, foi uma experiência realmente ímpar em minha vida.

Desafio. Rodrigo Poggian nasceu em Florianópolis. Na infância, achou um violão em um guarda-roupa em casa e, pronto, a música não lhe deixou mais. Com o tempo, iniciou os estudos de viola e, depois da faculdade, mudou-se para São Paulo – onde integra a Orquestra Sinfônica Heliópolis e o Quarteto Amaetê, criado com colegas do Instituto Baccarelli. Em janeiro, participou do 1.º Encontro Campestre de Violas. “Foi um aprendizado muito intenso, pelas aulas, mas também pelas conversas e pelas palestras”, garante.

Os temas foram dos mais variados – e incluíam, além de questões musicais, o momento do mercado musical. “É uma preocupação geral da minha geração. Tem tanta gente boa se formando e fica a pergunta: onde esse pessoal todo vai tocar, ainda mais quando levamos em consideração o encolhimento recente de verbas para essa área. Eu sinto que não há uma resposta pronta, mas ela precisará ser construída de maneira coletiva, ao longo do tempo", diz ainda.

Não por acaso, a música de câmara coloca-se como caminho – tanto profissional, alternativo à vida em uma orquestra, como filosófico – em projetos como esses. “Em sua essência, a música de câmara é um diálogo musical no qual todo artista é ouvido e tem responsabilidades”, acredita Jennifer Stumm. “À medida que entramos em nosso quinto ano, acredito cada vez mais nessa troca. A nossa questão, no final das contas, era saber se o contato humano seria capaz de produzir resultados artísticos novos e estimulantes.

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E a resposta é um poderoso sim. Quase 40 jovens que trabalharam conosco hoje estão estudando em escolas importantes mundo afora.” O Ilumina segue como um projeto gerido por músicos, mas já estuda a ampliação das atividades para além do festival: recentemente, uma residência foi realizada por Stumm e o contrabaixista Pedro Gadelha, da Osesp, em La Paz, na Bolívia. “Temos planos para novas residências até 2021, tanto na América Latina como nos Estados Unidos e na Inglaterra. No festival de Mantova deste ano, o Ilumina foi escolhido como um dos cinco maiores projetos de música de câmara, para participar de concertos, palestras e debates sobre que cara o futuro da música clássica pode ter”, afirma a violista. 

“Nunca foi fácil a vida do músico de concerto no Brasil, mas uma questão muito importante hoje é o que esses jovens profissionais vão fazer a esse respeito, em especial sem depender apenas do poder do Estado”, afirma Gustavo D’Ippolito. “Essa nova geração está se formando com bons professores e a internet torna o processo ainda mais interessante, pois você tem acesso a muita informação. Ninguém hoje engole qualquer coisa. E isso é muito bom. Ao mesmo tempo, apesar dos cortes recentes, houve uma descentralização no Brasil, com orquestras se formando e levando a música clássica a novos centros. É preciso entender o momento e o papel que você pode desempenhar nele.” 

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