Farpas e lirismo de Morrissey

Mito indecifrável e influente, o cantor inglês traz em março a São Paulo uma música que destila solidão

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Por Roberto Nascimento
Atualização:

Um giro pelo arquivo de entrevistas com Morrissey disponível em jornais e sites de fãs ilustra o fascínio que o cantor exerce continuamente sobre o universo pop há três décadas. Não raro, quando o repórter é capaz de manter a compostura (é comum eles se renderem à bajulação do herói que, nos Smiths, cantou a trilha de suas adolescências), a matéria envereda por uma descrição da mítica presença de Morrissey: o olhar misterioso, o senso de humor farpado, a constatação de que, apesar da língua afiadíssima, há um humanismo vulnerável e sincero por trás do ícone.

 

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Mas seja lá qual o ângulo da entrevista, o roteiro é sempre o mesmo: o inglês Steven Patrick Morrissey, de 52 anos, escapa ileso, tão enigmático quanto antes de responder às perguntas. Eis um dos trunfos da persona que o cantor construiu através dos anos, trocando farpas por todos os lados, de cutucões a pop stars e chefes de estado, a declarações controversas, como a clássica "é difícil não sentir que os chineses são uma espécie sub-humana", feita na ocasião de uma pergunta sobre os direitos de animais (Morrissey é vegetariano desde os 12 anos e defende a causa intensamente).

 

Mas pouco seria desta imagem não fosse sua ambiguidade sustentada pela arte. São raras as bandas que definiram uma geração da maneira com que os Smiths fizeram. As letras de Morrissey, ricas em poesia, prenhes de sinceridade, integram um cancioneiro que poderia traduzir por si só a complexidade da experiência adolescente.

 

Há medo, incerteza sexual e social, vulnerabilidade, ambição e solidão destilados em uma receita pop que reverberou com a cultura jovem inglesa dos anos 1980 da mesma forma que os Beatles fizeram nos anos 1960. Mas nem os quatro influentes discos dos Smiths, do homônimo de estreia ao ápice da banda, em The Queen Is Dead, e depois, não seriam suficientes para que Morrissey continuasse um mito indecifrável e influente por tantos anos (chegou a ser votado a figura mais influente da música pop do século 20 pela revista NME).

 

O lirismo hipnótico, ao mesmo tempo frágil, confessional e imponente das letras; um canto quase feminino vindo de uma figura que não estranharíamos fosse ela a de um segurança de boate, tece há 25 anos uma carreira solo de rara durabilidade, e não só produz discos consistentes desde o fim dos anos 1980, como faz shows à altura, encabeçando festivais como o Glastonbury ao lado do U2 e construindo apresentações no nível de poucos veteranos da atualidade, Iggy Pop entre eles.

 

O cantor, que se apresenta em São Paulo, no Espaço das Américas, no próximo dia 11 (data que faz parte de uma turnê que passa também pelo Rio e por Belo Horizonte), respondeu a quatro perguntas do Estado por e-mail. Como sempre, não poupou farpas ou sinceridade.

 

Você já disse que não há nenhum artista na música pop contemporânea capaz de fazer um impacto social. É difícil discordar. O que acha que acontece? Ainda há espaço para canções de protesto, ou será que isto está fora de moda?

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Se você pensar na primavera árabe, nos eventos que se passaram na Síria, na Líbia, no Egito, no Bahrein, etc., perceberá que agora é a hora do povo falar. Eles tentaram fazer isso com os protestos do Ocupe, mas a polícia bateu em todo mundo. Pode-se deduzir que os jovens estão menos engajados hoje em dia, mas não acho que isto seja verdade. O que acontece é que os cretinos são aqueles que têm o respaldo da mídia e aparecem na televisão. Na América, especificamente, há uma determinação feroz por parte do governo para manter as pessoas o mais mal informadas possível. Quero dizer, pense na televisão dos Estados Unidos. Pela programação dá para deduzir que todos americanos têm 5 anos de idade. Mas isso não condiz com a realidade. Para todo moleque que começa a chorar porque conseguiu vencer o American Idol deste ano, há milhares que olham para a tela e mandam este tipo de cultura para aquele lugar.

 

Você integra o seleto grupo de estrelas veteranas que ainda fazem um belo show e continuam produzindo música viril e relevante três décadas após o primeiro disco. Isto é uma coisa que acontece naturalmente, ou existe uma sensação de conforto em glórias passadas com que você tem de lutar contra para não se acomodar?

 

As glórias passadas não são tão boas quanto as recentes. A minha carreira fica mais interessante à medida que o tempo passa. Eu tenho uma posição ideal na história da música. Mas ninguém questiona a maneira como eu me fiz: foi através das canções. Eu não cheguei aqui por nenhuma outra razão. Não é por causa do hype da imprensa, ou por causa de publicidade enganosa. Tenho orgulho da minha posição. E cheguei aqui de forma honesta e justa. Faz 30 anos agora, portanto, devo estar fazendo algo certo.

 

A melancolia é inseparável de suas letras e você já disse que o ser humano é essencialmente solitário. Qual a importância da solidão no seu processo criativo? Seria a sua musa?

 

Sim, porque muitas vezes eu escrevo as coisas que, se não virassem canções, seriam sussurradas para alguém do outro lado do meu travesseiro, no fim do dia.

 

Você escuta muita música atual?

 

Eu escuto de tudo, mas a maioria dos nomes é lastimável. A imprensa musical - o que sobrou dela! - bajula os próprios amigos, só escreve sobre seus amigos, inventa prêmios para dar a seus amigos, mês sim, mês não. Ninguém no planeta acredita que ainda há esperança para a música moderna.

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