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'Ensaio Sobre Música Brasileira' de Mário de Andrade ganha reedição

'Ensaio é obra-chave para expressão musical', diz a musicóloga Flávia Camargo Toni, responsável pela segunda edição da obra

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Resposta a um leitor de Ourinhos; resenha de um recital onde se cantou, entre outras gemas, Estrela é Lua Nova, de Villa-Lobos; resenha do lançamento das partituras de Trovas de Amor, de Camargo Guarnieri; e até na crônica Natal, de 15 de dezembro de 1928 – essas são algumas das vezes em que Mário de Andrade remeteu e já se corrigiu. Isso menos de um mês após o lançamento da primeira edição de seu Ensaio Sobre Música Brasileira

O escritor Mário de Andrade Foto: Acervo Estadão

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Um livro que sempre esteve no centro de suas reflexões musicais, pelo qual ganhou, a título de direitos autorais, 15 míseros exemplares. Dividiu-o em duas partes: na primeira, fez o mais agudo exercício teórico sobre as músicas populares brasileiras; na segunda, reproduziu as partituras com comentários e letras de 122 aboios, acalantos, cantigas de roda, cantos de trabalho, danças, danças dramáticas, cantos religiosos, cantigas de bebida, cocos, toadas, martelos, desafios, chulas, lundus, modinhas e pregões garimpados Brasil afora, graças a amigos como Luiz da Câmara Cascudo, no Rio Grande do Norte, e à viagem ao Norte entre maio e agosto de 1927. Dez anos depois, já como diretor do Departamento de Educação da Prefeitura de São Paulo, outro gesto divisor de águas: bancou a Missão de Pesquisas Folclóricas, verdadeiro marco inicial da pesquisa de campo da musica brasileira. Tinha consciência da importância do Ensaio, capaz de transformar não só a vida musical daquele momento no país, como também provocar até hoje criações tão instigantes quanto a suíte Veredas, para orquestra de cordas, de Egberto Gismonti. O mesmo Gismonti sugeriu à pianista Heloísa Fernandes um mergulho nas partituras do Ensaio – e dali saiu um dos mais belos álbuns de música instrumental recente (Candeias, de 2010).  A musicóloga Flávia Camargo Toni é a responsável pela segunda edição – 92 anos depois da primeira e 75 anos depois da morte dele. E deve estar com a consciência de ter concluído um ciclo virtuoso em torno da obra magna de Mário no escaninho da música que começou décadas atrás, quando processou e descreveu todo o acervo constituído pela Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. Mário sintetizou no Ensaio o melhor do que tinha a dizer sobre música. A verdadeira segunda edição do Ensaio, que será lançada dia 19 de novembro em evento virtual no Instituto de Estudos Brasileiros, dobrou de tamanho. O criterioso aparato crítico da edição teve organização, estabelecimento de texto e notas de Flávia. Feliz por conseguir editar o livro no formato partitura – intenção inicial de Mário --, ela também fez um rico dossiê com críticas e artigos contemporâneos à edição de 1928. O dossiê também lista os livros e partituras consultador por ele. E publica o embrião do Ensaio, o artigo Cantos-de-Trabalho no Brasil.’’

'Ensaio é obra-chave para expressão musical', diz a musicóloga Flávia Camargo Toni

Visto com quase um século de distância, ‘Ensaio’ mantém hoje o mesmo frescor polêmico de ‘Macunaíma’? O “frescor polêmico” do Ensaio, durante certo tempo, deveu-se ao fato de não se conhecer as diversas expressões musicais do país. Creio, sim, que as proposições dele são sempre “frescas” ao lembrarem a intradutibilidade (na falta de melhor expressão) da cantoria, a performance que se mantém avessa às formulações da gramática musical. O “frescor polêmico”, ele sempre terá, porque apela para a conscientização de que as escolas não prescindem das soluções individuais. Mário reconheceu, em 1943, que uma das finalidades do livro era provocar. Pretendi mostrar a gestação da pesquisa para o musicólogo, reproduzindo as crônicas e pequenos ensaios dos anexos, por onde a gente acompanha as maneiras pelas quais ele vai se aproximando das novas escutas e vai se tornando capacitado para falar das diferenças entre os ritmos e as formas que ele acolhe no livro.Você diz que ‘Ensaio’ “é obra-chave para o rumo da expressão musical do país”. Pode explicar um pouco mais? De um lado, traz para o papel o que o musicólogo discutia com seus amigos compositores – Villa-Lobos, Gallet, Guarnieri, Lorenzo Fernández – e discutirá com Mignone a partir de 1929, o que materializa ou dá tônus a essa discussão que estava até então no plano das ideias. O capricho e a paciência ao estudar metodicamente as partituras e os livros são mérito dele que, assim como na poesia, faz da pesquisa um projeto de conscientização, um projeto de ação. De outro, acredito que Ensaio é obra-chave para o rumo da expressão musical, porque ele parte de um cancioneiro que é comum, quase que “epidérmico”. Não acolheu o que fosse raro, porque contou com a colaboração de pessoas das cidades, apelando para as memórias coletivas.Estão no “Ensaio” as diretrizes do nacionalismo musical brasileiro tal como Mário de Andrade o formulou. Aliás, ele enfatiza, que “o sucesso na Europa não tem importância nenhuma pra Música Brasileira”. Como demarcar os limites de um nacionalismo musical sem esbarrar em cartilhas em certo sentido redutoras? A questão é superpolêmica e a resposta não reflete nenhuma assertiva específica do Mário, mas acredito que nacional/nacionalidade/nacionalismo, sendo palavras polissêmicas atraem sentidos e usos de natureza ideológica bem datada. Assim, é quase impossível evitar esse reducionismo. As marcas que caracterizam as identidades nacionais frequentam espaços limítrofes com o exótico e o popular. Mas as grandes obras de nossos autores do século 20 – estou pensando na “Abertura Concertante”, de Guarnieri – passam ao largo, não fazem “concessões” porque não trabalham o que é popular no sentido do exótico, não fazem com que tudo soe de forma coreográfica. Ou melhor, o que é coreográfico é usado para associar às imagens de movimentos das danças, porque elas são sempre bonitas, mas o coreográfico não é usado de forma apelativa, descontextualizada.Houve lances detetivescos em regatar o principal “exemplar de trabalho” de Mário? Pois o caso é mesmo para Agatha Christie. Não vi necessidade de aprofundar o assunto para que ele não se tornasse mais importante do que a obra de Mário de Andrade. Nos tempos em que vivemos, os sensacionalismos não são bons companheiros. 

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