Enquanto o Carnaval não vem, Velha Guarda da Portela lança CD e DVD

'Velha Guarda da Portela - Minha Vontade' foi gravado em 2015 e chega às lojas em um momento delicado para as Escolas de Samba

PUBLICIDADE

Foto do author Danilo Casaletti
Por Danilo Casaletti
Atualização:

No samba Portela na Avenida, imortalizado pela gravação de Clara Nunes em 1981, os compositores Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro afirmam que a escola de samba azul e branco tem a Velha Guarda como sentinela. Ou seja, ela é aquela que vigia pelo patrimônio - no caso, o imaterial - representado pela tradição e pelo samba feitos na agremiação nascida no bairro de Oswaldo Cruz, no subúrbio carioca, em meados dos anos 1920. Embora nem sempre lembrada nos grandes momentos da escola, quando os compositores e as pastoras aparecem, seja no desfile ou no palco, a emoção é garantida – como se vê no CD e DVD Velha Guarda da Portela - Minha Vontade, que a gravadora Biscoito Fino lança neste mês de setembro. 

Gravação de 'Velha Guarda da Portela - Minha Vontade' foi feita em 2015 e estava guardada Foto: Ari Kaye

PUBLICIDADE

A apresentação, gravada na quadra da escola em julho de 2015, estava na gaveta todo esse tempo e chega ao mercado em uma hora difícil para as escolas de samba – ainda há uma grande dúvida, por conta da pandemia, sobre como será o carnaval de 2021 - e para os próprios integrantes, impedidos de se apresentarem. “Fiquei feliz que esse projeto saiu, viu? Foi gravado com tanto carinho, com a quadra lotada”, relembra Monarco, um dos baluartes da Portela, na ala de compositores da escola desde os anos 1950 e que, recentemente, completou 87 anos.

A pastora Tia Surica, outro nome importante da escola, também comemora, mas lamenta as imposições trazidas pelo "novo normal". “Não sei por que demoraram tanto para lançar. Uma pena que veio no meio de uma pandemia, não poderemos fazer show de lançamento”, diz. Ao lado deles, participaram do grupo nomes como Áurea Maria, Neide, Jane, Serginho, Marquinho do Pandeiro e outros.

Entre clássicos portelenses como Natureza, de Manacéa; Desengano, de Aniceto; e Cocorocó, de Paulo da Portela, há uma composição feita especialmente para a apresentação: Lindo, de Monarco em parceria com Noca da Portela, que versa sobre a felicidade de ver a escola entrar na avenida e o orgulho que isso dá aos torcedores. “A Portela é primeira porque é a madeira de jacarandá”, diz a letra.

“Eu tenho muitas composições inéditas. Na quarentena, eu aproveitei para refinar algumas. Melhorei um samba que estava muito grave. Agora é esperar que os cantores se interessem, como o Paulinho (da Viola), o Zeca (Pagodinho), a Marisa (Monte), a Maria Rita”, alerta Monarco, que em 2018 lançou o álbum autoral De Todos os Tempos, com músicas novas e outras que ele nunca havia gravado antes. “Mas música tem hora certa. Elas sempre são encontradas. Quem me ensinou isso foi o Sivuca (compositor e instrumentista; 1930-2006)”, diz.

Música tem hora certa. Elas sempre são encontradas

Monarco, compositor da Portela

Participações de peso

Batizado com o nome da canção composta por Chatim (1915-1991) e com 17 faixas, Velha Guarda da Portela - Minha Vontade tem a participação de Cristina Buarque em Quantas Lágrimas (Manacéa), samba que a cantora ajudou a imortalizar em gravação de 1974; Teresa Cristina em Sofrimento de Quem Ama (Alberto Lonato); e Maria Rita em Coração em Desalinho (Monarco e Ratinho), gravada por Zeca Pagodinho em 1986 e revitalizada por ela em 2011, como tema de abertura da novela Insensato Coração. A direção musical ficou a cargo dos músicos Paulão 7 Cordas e Mauro Diniz, este último, filho de Monarco.

Publicidade

Enquanto não podem voltar aos palcos, Monarco e Tia Surica se conectam nas redes. Ele fez sua primeira live em 31 de agosto, com participações de Diogo Nogueira e Maria Rita. Embora animado, Monarco diz que prefere mesmo é estar bem perto do público. “Gosto é de subir ao palco, ver o povo cantando e sambando lá embaixo. No final, falar com todo mundo, tirar foto”, confessa o compositor.

Tia Surica durante desfile da Portela, em 2018: lives todo primeiro sábado do mês na pandemia Foto: Wilton Junior/Estadão

Já Surica tem se apresentado online todo primeiro sábado de cada mês. “Fui pega de surpresa com essa história de live, mas acho que me saí bem. É diferente, né, meu filho? Falta o calor humano. Mas, dá para levar”, diz. Em outubro, ela pretende voltar com sua famosa feijoada no Teatro Rival. No mês seguinte, já pensa na festa seus 80 anos. “Se a epidemia deixar, claro.” 

Em relação ao carnaval, Tia Surica acredita que os desfiles do próximo ano serão cancelados. “Com o País em crise, com muita gente passando fome, desabrigada, o melhor é investir o dinheiro no povo. Carnaval tem todo ano. Sou sambista, vou ficar triste. Mas, se não tiver um ano, não vou morrer”, diz.

Cinquentenário

Embora não tenha sido concebido com esse propósito, o lançamento de Velha Guarda da Portela - Minha Vontade coincide com os 50 anos do álbum Portela, Passado de Glória, justamente o que deu o pontapé inicial para a valorização da velha guarda dentro das escolas de samba. Capitaneado por Paulinho da Viola, o disco traz nomes como os irmãos Manacéa (1921-1995), Aniceto (1912-1982), Mijinha (1918-1980), além de Ventura (1908-1974), Tia Vicentina (1914-1987), Iara (1916-1991), entre outros. 

Monarco: autor de sambas históricos da Portela Foto: Claudia Dantas

“Era um sonho do Paulinho registrar os sambas dos compositores da Portela. Ele frequentava a feijoada na casa da Tia Vicentina e foi recolhendo o repertório. Foi um disco muito importante em uma época que o samba estava de caixa baixa”, diz Monarco, que não participou da gravação, mas contribuiu com a faixa-título – aquela que diz “se eu for falar da Portela, hoje eu não vou terminar”. “Estava de pernoite”, explica o compositor, que, à época, trabalhava em um mercado de peixe.

Tia Surica também não estava no grupo original – juntou-se a ele em 1980, a convite de Manacea, a quem faz questão de chamar pelo nome completo. “Quem me convidou para o grupo foi Manacéa José de Andrade. Ele disse que eu não poderia estar fora da Velha Guarda. E nela estou até hoje, graças a Deus”, diz. Naquela altura, Surica já era uma velha conhecida da escola, pois desfilava desde os 7 anos, acompanhando a mãe. 

Publicidade

O compositor e escritor Nei Lopes, autor, ao lado de Luiz Antonio Simas, do livro Dicionário da História Social do Samba, classifica Portela, Passado de Glória como um álbum “antológico”, que jogou luzes a muitos compositores- não só da azul e branco. “Esse disco despertou atenção para outros repertórios esquecidos, alguns ainda não convenientemente conhecidos. Os Acadêmicos do Salgueiro, escola a que pertenço, tem um repertório de sambas gravados, com sucesso, que remontam à década de 1940. Na Mangueira, o saudoso compositor e partideiro Tantinho, recentemente falecido, produziu e gravou, em sua bela voz, um CD duplo só com sambas de antigos compositores de sua escola. O Império Serrano também tem um repertório invejável”, diz. 

Uma das artistas notoriamente impactada por Portela, Passado de Glória foi Cristina Buarque, que, em seu primeiro LP, Cristina, de 1974, incluiu Quantas Lágrimas, de Manacéa. “Ganhei esse disco de presente e fiquei louca. Ouvindo-o, eu me aproximei deles (os compositores da Portela). Falei para o Faro (Fernando, produtor do disco), que tinha que colocar uma deles no meu primeiro álbum. Ele escolheu essa. Foi meu primeiro e último sucesso”, diz Cristina.

Em 1981, a Velha Guarda cantou com Cristina Vida de Rainha, de Alvaiade e Monarco. “Era sempre muito bom estar com todos eles. De Manacea eu fui mais próxima, já que Mijinha, quando eu me aproximei deles, já estava em um asilo. Estive com ele apenas uma vez, em uma festa do terreiro da Tia Doca. Além de muito talentosos, daquele coro lindo que as pastoras faziam, eram todos muito divertidos”, lembra. Além de Cristina e do próprio Paulinho, artistas como Clara Nunes, Beth Carvalho e, posteriormente, Marisa Monte, beberam da fonte dos compositores portelenses.

Para Nei Lopes, preservar a história e as canções desses baluartes das agremiações – ele lembra que o termo tem origem no jargão militar, para identificar os defensores das tradições - é essencial para a história do samba.

Samba não é apenas um gênero musical; é um todo cultural

Nei Lopes, compositor

"E, no caso dos repertórios antigos, trata-se um patrimônio, cuja preservação é garantida constitucionalmente pelo artigo 216 da Constituição de 1988, felizmente ainda em vigor, embora sempre ameaçada”, diz Nei.

Velha Guarda da Portela - Minha Vontade Biscoito Fino Box CD e DVD - R$49.90

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.