Empatia e inovação em recital precioso de Natalie Dessay

Dupla com Laurent Naouri estabelece empatia imediata com um repertório francês

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

O casal Natalie Dessay e Laurent Naouri mostrou, na iluminada noite de segunda-feira, 5, na Sala São Paulo, por que é tão sedutor e mágico o mundo da canção dita culta, ou de arte, em sua manifestação mais delicada, a da “mélodie” francesa. Ela, uma das sopranos mais incensadas da cena lírica internacional, decidiu desde o ano passado dedicar-se apenas à canção. Ele, um excepcional barítono, deslumbrou o público com uma atuação impecável, no mesmo nível extraordinário da diva.

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De fato, este é um domínio tão específico que, em geral, os recitais optam por repertórios bem conhecidos do público, para estabelecer empatia imediata entre palco e plateia. Pois eles inovaram na construção do recital. Primeiro, a feliz ideia de construí-lo em torno de duetos para barítono e soprano de criadores franceses refinados, como Gabriel Fauré (magnífica a leitura de Lágrimas de Ouro) e Henri Duparc (extasiante a performance em A Fuga). Na primeira parte, preenchida com estes compositores, o casal subjugou a plateia com seus sortilégios vocais e um refinamento precioso, só presente em apresentações de fato especiais.

A segunda parte comprovou a tese de Laurent sobre a especificidade de “mélodie” francesa na entrevista ao Estado de sábado: “A canção é uma tentativa de compreender a estrutura do poema, a maneira como o texto é gerado”. O autor da proeza atendia pelo nome de Francis Poulenc. Integrou o Grupo dos Seis, formado por jovens compositores franceses que nos anos 1920 parisienses peitaram o romantismo, o wagnerismo (então avassalador) e o impressionismo de Ravel e Debussy. Pregaram simplicidade e clareza, mas com pitadas surrealistas. 

Pois foi justamente o surrealista Guillaume Apolinaire que levou Poulenc, em 1948, a compor os Calligrammes, ciclo de sete poemas levando o subtítulo “poemas da paz e da guerra”. O compositor tentou até reproduzir musicalmente “as particularidades tipográficas” dos poemas, como em Mutação, em que o refrão “Eh! Oh! Há!” pontua cada verso falando da guerra. O mote da primeira guerra esteve presente em toda a segunda parte, com direito a uma claríssima explicação de Laurent em bom português. Em Chove, Apollinaire escreveu em cinco linhas verticais expressando o movimento das gotas de chuva – e Poulenc tratou de reproduzir isso no piano (que, aliás, teve em Maciej Pikulski um acompanhador irretocável). As inflexões de seu belo e poderoso timbre de barítono, as passagens mais inflamadas – tudo se conjurou num círculo virtuoso magistral, com perfeita integração entre intérpretes e obra.

O momento mágico estendeu-se com a filigranada interpretação de Natalie para outro ciclo de Poulenc, Fiançailles Pour Rire, sete poemas entre frívolos e nostálgicos de Louise de Vilmorin, escritos durante a Segunda Guerra Mundial. A fluência do canto de Natalie também se visualiza num gestual delicado que destaca cada verso e cada voluta melódica. A nostalgia amarga de Sobre a Relva, a macabra e machadiana Meu Cadáver É Suave Como Uma Luva e o amor agridoce de Violino – sensações sutis que sua voz transmite em infinitas gradações. 

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