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Em New Orleans, um encontro de ídolos desaparecidos

No 38.º Festival de Jazz de New Orleans, a raríssima oportunidade de ouvir o músico T-Bone Burnett, considerado um dos maiores produtores do planeta

Por Agencia Estado
Atualização:

O que têm em comum Elvis Costello, Cassandra Wilson, Los Lobos, Roy Orbison, k.d. lang, Spinal Tap, Bob Dylan, B.B. King, Tony Bennett? Todos eles foram produzidos por um sujeito chamado T-Bone Burnett. Ele inventou aquela sonoridade que muita gente associa imediatamente às raízes da música americana, uma pegada meio blues, meio country-rock, um jeito meio caipira num invólucro moderno e nervoso. O 38.º Festival de Jazz de New Orleans, na sexta, 27, embutia uma raríssima oportunidade de ver e ouvir o músico americano de 59 anos, considerado um dos maiores produtores de música do planeta - ganhou um Grammy pela trilha sonora de E aí, Meu Irmão, Cade Você? (O Brother, Where Art Thou, de 2000), com George Clooney, e foi indicado para o Oscar usando seu nome real Henry Burnett, pelo trabalho na trilha sonora de Cold Mountain. T-Bone é uma lenda da música, mas poucos o viram em ação. Nos anos 70, ele era da banda de Bob Dylan. Suas canções, como Call it Stormy Monday, viraram clássicos do blues. Na sexta, com uma pequena ajuda de alguns amigos "desocupados" - entre eles, o fantástico guitarrista Marc Ribot (da suingada banda Los Cubanos Postizos) e o gênio da bateria Jim Keltner (o preferido dos Beatles solteiros, especialmente Paul McCartney) - T-Bone surgiu no palco. Parecia uma mistura de Tom Waits com Johnny Cash, todo de preto, voz rouca e uma performance arrasadora nos duelos de guitarra com Marc Ribot. Magnético, o produtor parecia ali ter reunido uma trupe de amigos que estavam num churrasco e veio mostrar o sentido da verdadeira música, sem o estilo fast food que geralmente marca os festivais. O anti-social cantor irlandês Van Morrison, nativo de Belfast, que tem fama de não sair do seu trailer nem para ver como está o tempo lá fora, dessa vez surpreendeu. Acompanhado por uma banda semiacústica, tocando saxofone e sorrindo muito, Van Morrison chegou bem-humorado e até arriscou passear no meio dos mortais comuns, com seu um metro e cinqüenta e poucos de altura. Fez um show também roots, de raiz, com muitos blues e uma pegada vigorosa de órgão, o que tornava sua figura uma espécie de pregador maluco em canções belíssimas, como Moondance. Sonho Mas T-Bone e Van Morrison foram o chantilly de um bolo muito saboroso. Muitos velhos ídolos do rock, de quem a gente não tinha notícia faz tempo, marcaram presença em algum dos dez palcos do JazzFest de New Orleans. A mais inusitada presença foi a do compositor Bobby Charles, de 69 anos, o autor da famosa canção See You Later, Alligator, gravada por Bill Halley e Seus Cometas. Bom, mesmo compositor consagrado, Bobby Charles virou um esquisitão ali pelo meio dos anos 70. Em 1976, tinha feito sua última aparição pública com o grupo The Band, na turnê Last Waltz. Virou um recluso crônico. No ano passado, ameaçou aparecer no JazzFest, mas deu cano na última hora. E dessa vez também não era garantido. Ele disse a um jornal local, horas antes do show: "Eu sonhei que estava no JazzFest e um cara apareceu manuseando uma pistola. Eu disse a ele: jogue isso fora antes que você machuque alguém. E então o cara atirou duas vezes na minha perna", disse Charles, que estava considerando isso um sinal para evitar multidões. Outro que tinha evaporado era Richie Havens, de 66 anos. Ele, um dos símbolos do mítico festival de Woodstock, nos anos 60, ressurgiu no meio da tarde mais calorenta de domingo, vestindo uma bata azul, barba igual àquela do guru dos Beatles, o Maharishi, anéis gigantes nos dedos e com um único músico ao seu lado, outro violonista. Mandando bem nos blues e no folk, em canções como Planet Earth, com a voz límpida e poderosa, Richie parecia mais em forma do que nunca, dando uma leitura soul a todo número. Mais adiante, parecendo um corretor de imóveis, Johnny Rivers voltava a enlouquecer uma platéia nostálgica com seus velhos hits, e fechava sua apresentação com a inabalável Secret Agent Man. A multiplicidade de shows só perde para a familiaridade entre os músicos. Os astros do jazz parecem todos fazer parte de uma mesma família - e às vezes são mesmo. Por exemplo: o baterista George French Jr. tocou cinco vezes numa mesma jornada no palco Economy Hall. Mal saiu da bateria para tomar água. Começou tocando para o próprio pai, George French. Depois, foi recrutado pela veterana cantora de blues Linda Hopkins. Quando se preparava para sair, outro músico foi buscá-lo para integrar sua banda. E ele não parecia insatisfeito com isso. Estrelas Norah Jones e Rod Stewart foram as estrelas da jornada até agora. Mais estrelas do que merecem. Rod, que abriu seu show com Forever Young, deixou de lado o repertório de standards que tem segurado sua carreira e centrou o show nos hits pop, ladeado por três tecladistas, uma violinista, dois guitarristas, baixo e bateria. Parece um tanto ultrapassado, mas sua voz, seu carisma e sua performance elétrica são os segredos do seu show, que pode passar pelo Brasil em breve, dizem aqui. Norah Jones precisava de silêncio para seu novo show. Como Rod Stewart, ela também não permitiu fotos, esperando garantir algum clima para sua performance. Mas, tomado por milhares de pessoas com cadeiras de sol, piqueniques familiares em toalhas-xadrez aqui e ali, o show de Norah parecia um pontinho no infinito no meio de uma tormenta Não funcionou bem. O festival de New Orleans é uma mostra-Golias, um monstro de festival, cuja maior atração é justamente sua capacidade de espraiar-se por todos os outros palcos da cidade, pequenos bares enfumaçados e clubes tradicionais de um século, em jams inusitadas e primorosas. Algumas delas, de que o repórter do Estado participou como convidado, são daquelas de contar para os netos. No sábado à noite, num apartamento de um ricaço no alto do hotel Ritz-Carlton, tocava a banda funky do velho baterista Zygaboo, uma espécie de Funkadelic movido a pimenta sulista. De repente, apareceu Irving Mayfield com seu trompete - e tocou. E a Lua estava brilhando no alto, e lá embaixo havia a água brilhante do Mississippi. E, assim, o jazz em New Orleans continua fazendo suas lendas.

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