Em gravação de novo DVD, Caetano Veloso critica Lobão

Cantor pega no pé do roqueiro e referenda seu zelo afetivo pelo Rio em várias das canções inéditas

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Por Lauro Lisboa Garcia
Atualização:

Duas noites antes do tão esperado encontro com Roberto Carlos, Caetano Veloso fez o segundo de dois shows para gravar o DVD Obra em Progresso, no Teatro Oi Casa Grande. Cantou rock, samba, recebeu Jorge Mautner e Nelson Jacobina no bis, reinterpretou clássicos de repertório próprio e alheio, incluindo bossa nova. Também pegou no pé de Lobão, com muito senso de (bom) humor nas falas, e referendou seu zelo afetivo pelo Rio em várias das canções inéditas.   Tudo parecia confluir para as relações entre ele, a cidade e o roqueiro, que também metaforicamente se alimenta do sangue de Caetano, numa via recíproca de amor e algo que não chega a ser ódio de verdade, apenas virtual, estético. A primeira canção do show é Lobão Tem Razão, recém-composta pelo tropicalista. Na letra, há citações à obra e à pessoa do roqueiro ("o rock acertou", "o homem é o próprio Lobão do homem") e, além disso, Caetano também ironiza o fato de ambos já terem se desentendido em relação ao comportamento dos cariocas.   E o Lobão que atacou Caetano certa vez por uma mal-entendida observação sobre o Rio, agora, morando em São Paulo, critica o Rio justamente quando Caetano está numa fase de louvação à cidade maravilhosa. Ambas as polêmicas, de anos atrás e de anteontem, foram via Jornal do Brasil, para o qual também sobram ironias de Caetano.   Curiosamente, ele também incensa a Lapa, em outra novíssima canção que leva apenas o nome do bairro, quando, por incrível coincidência, Lobão a critica com veemência. Assim como destila seu veneno contra a "sacralização" da bossa nova, com uma frase de hilariante indecência. Caetano ri, pelo fato de que alguém que porventura tenha lido a entrevista no jornal confunda a situação. Porque pode parecer que as duas canções citadas foram feitas em réplica a ele. "E eu aqui cantando que Lobão tem razão", disse, zombeteiro.   Farpas e amabilidades à parte, o fato é que há muitas canções novas interessantes de Caetano, em que ele prossegue na temática sexual de Cê – como em Tarado ni Você, A Cor Amarela, além da recuperada Três Travestis, pós-Ronaldo, de 1982, cantada com toda graça, no bloco de voz e violão – com lances de bissexualidade. E tem Homem, refeito, do próprio Cê, como Odeio, pelo sensacional trio formado por Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo e teclados) e Marcelo Calado (bateria), que vem com ele desde o projeto anterior.   Dentro da estética do que Caetano chama de "transamba", eles surpreendem nos arranjos de novas e antigas canções. As versões de Desde Que o Samba É Samba, Uns (em versão bem superior à original de 1983), You Don’t Know me (todas de Caetano) e Incompatibilidade de Gênios (João Bosco/Aldir Blanc) são os highlights do show. Nelas é que, com apoio brilhante da banda, Caetano reafirma a estimulante capacidade de se reinventar, por meio de um samba torto, desossado e muito vivo.   Incompatibilidade é escaldada, depenada, descarnada, esmerilhada radicalmente pelo mais arrojado dos arranjos – com a bateria e o baixo marcando em tempos diferentes, enquanto o violão de Caetano "transamba" numa cadência meio bossa nova e a guitarra sobrevoa com incríveis riffs de rock.   Se "desconstruir" e "experimentar" são "atitudes" da moda, ele vai além porque, como tropicalista da gema e da raiz, já fazia isso 40 anos atrás, com as bênçãos de Rogério Duprat, Walter Smetak, Mutantes e Tom Zé. Por falar em bênção, Caetano também louva suas entidades baianas Dorival Caymmi (Você Já Foi à Bahia?) e João Gilberto (com Saudade Fez Um Samba, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, gravado no mitológico LP de estréia, Chega de Saudade, de 1959). Vingança (Lupicínio Rodrigues) soa bem mais irônica na seqüência de Três Travestis e Água, de Kassin, que ele cita em Lapa, é a lindeza absoluta.   Diferentemente do clima de confusão, muita falação e pouca atenção do público que foi ao show registrado no DVD de Cê, pelo Multishow, no Casa Grande, livre de celebridades narcisistas, comportou-se compenetrado e um tanto frio.   Acontece que se estava ali para conhecer novas canções, não para cantar junto velhos sucessos. Isso é atípico em shows de música popular nos dias de hoje, principalmente no Rio, e a situação favoreceu para evidenciar o peso de letras como a de Lapa ("essa moça-vanguarda, esse rapaz gostoso", "cool e popular", "choro e rock’n’roll")e Base de Guantánamo ("O fato de os americanos desrespeitarem os direitos humanos em solo cubano é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar").   Outras das mais contundentes é Falso Leblon, em que combate as drogas ("Odeio a vã cocaína") e se questiona: "O que faremos do Rio quando, enriquecendo, passarmos a dar as cartas, as coordenadas de um mundo melhor." A temática social volta nas "bordas da favela" de Perdeu, uma espécie de retomada de Haiti, não só pelas imagens da letra, como pela estrutura, com uma parte canto-falada, quase rap, e outra mais melódica.   Caetano explora bastante os falsetes, faz concessão no bis com Leãozinho e diverte-se com Mautner e Jacobina em Vampiro e Manjar de Reis. Nem tudo está pronto (não é por acaso que o show se chama Obra em Progresso), mas a crueza de algumas soluções sonoras decorre do próprio conceito do projeto – progressista em si.

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