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Em cada linha, obra de Gilberto Gil fala por si

Ao mesmo tempo em que reinventava a harmonia e a forma de caminhar por ela com suas linhas melódicas, Gil, o novo imortal da Academia Brasileira de Letras, erguia um discurso denso e flexível, regionalista e amplo

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Aos que cobram texto dos membros nomeados para a imortalidade pela Academia Brasileira de Letras, Gilberto Gil, o mais novo integrante, tem muitos. Sua posse na ABL será nesta sexta, 8. Analogamente à criação do uso da harmonia que leva a sua assinatura no segundo ou terceiro acorde, ao mesmo tempo em que desenvolvia sua canção menos gilbertiana e mais gonzaguiana do que Caetano Veloso, Gil lidava com a palavra com presença e amplitude, densidade e fruição. Gil é um mestre, basta revisitar qualquer trecho de suas obras:

Gil, em 2020 Foto: Flora Gil

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1. Lamento Sertanejo:Por ser de lá Do sertão, lá do cerrado Lá do interior do mato Da caatinga do roçado. Eu quase não saio Eu quase não tenho amigos Eu quase que não consigo Ficar na cidade sem viver contrariado. Por ser de lá Na certa por isso mesmo Não gosto de cama mole Não sei comer sem torresmo Eu quase não falo Eu quase não sei de nada Sou como rês desgarrada Nessa multidão boiada caminhando a esmo

2. Não Tenho Medo da Morte

Não tenho medo da morte Mas sim medo de morrer Qual seria a diferença Você há de perguntar É que a morte já é depois Que eu deixar de respirar Morrer ainda é aqui Na vida, no sol, no ar Ainda pode haver dor Ou vontade de mijar

A morte já é depois Já não haverá ninguém Como eu aqui agora Pensando sobre o além Já não haverá o além O além já será então Não terei pé nem cabeça Nem fígado, nem pulmão Como poderei ter medo Se não terei coração?3. Tempo Rei

Não me iludo Tudo permanecerá do jeito que tem sido Transcorrendo, transformando Tempo e espaço navegando todos os sentidos

Pães de Açúcar, Corcovados Fustigados pela chuva e pelo eterno vento Água mole, pedra dura Tanto bate que não restará nem pensamento

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Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei Transformai as velhas formas do viver Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei4. Se Eu Quiser Falar com Deus

Se eu quiser falar com Deus Tenho que ficar a sós Tenho que apagar a luz Tenho que calar a voz Tenho que encontrar a paz Tenho que folgar os nós Dos sapatos, da gravata Dos desejos, dos receios Tenho que esquecer a data Tenho que perder a conta Tenho que ter mãos vazias Ter a alma e o corpo nus Se eu quiser falar com Deus Tenho que aceitar a dor Tenho que comer o pão Que o diabo amassou Tenho que virar um cão Tenho que lamber o chão Dos palácios, dos castelos Suntuosos do meu sonho Tenho que me ver tristonho Tenho que me achar medonho E apesar de um mal tamanho Alegrar meu coração5. DrãoDrão, o amor da gente é como um grão Uma semente de ilusão Tem que morrer pra germinar plantar n'algum lugar Ressuscitar no chão nossa semeadura Quem poderá fazer aquele amor morrer Nossa caminhadura? Dura caminhada Pela estrada escura Drão, não pense na separação Não despedace o coração O verdadeiro amor é vão Estende-se infinito, imenso monolito, nossa arquitetura Quem poderá fazer aquele amor morrer Nossa caminhadura? Cama de tatame Pela vida afora6. RefazendaAbacateiro, acataremos teu ato Nós também somos do mato como o pato e o leão Aguardaremos, brincaremos no regato Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração

Abacateiro, teu recolhimento é justamente O significado da palavra temporão Enquanto o tempo não trouxer teu abacate Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão

Abacateiro, sabes ao que estou me referindo Porque todo tamarindo tem O seu agosto azedo, cedo, antes Que o janeiro doce manga venha ser também7. Copo VazioÉ sempre bom lembrar Que um copo vazio Está cheio de ar É sempre bom lembrar Que o ar sombrio de um rosto Está cheio de um ar vazio Vazio daquilo que no ar do copo Ocupa um lugar É sempre bom lembrar Guardar de cor que o ar vazio De um rosto sombrio está cheio de dor É sempre bom lembrar Que um copo vazio Está cheio de ar Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho Que o vinho busca ocupar o lugar da dor Que a dor ocupa metade da verdade A verdadeira natureza interior Uma metade cheia, uma metade vazia Uma metade tristeza, uma metade alegria A magia da verdade inteira, todo poderoso amor A magia da verdade inteira, todo poderoso amor É sempre bom lembrar Que um copo vazio Está cheio de ar 

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