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Elomar é narrador da crônica sertaneja

A prosa de acento regional de Elomar resgata, recupera, recria da maneira mais fiel possível a linguagem, a religiosidade, a mitologia do sertão

Por Agencia Estado
Atualização:

A gravadora independente Kuarup, que está comemorando 25 anos de existência acaba de lançar o disco Cantoria Brasileira, que traz, em primeiro plano, cinco expressões fundamentais da diversidade da música regional brasileira - os baianos Elomar Figueira de Melo e Xangai, o mato-grossense Pena Branca, o paulista Renato Teixeira e a pernambucana (há muitos anos radicada na Europa) Teca Calazans. Na base, mais nomes importantes: o violeiro Chico Lobo, de Minas o violonista Natan Marques, de São Paulo, como são daqui outro violeiro, Heraldo do Monte, e o sanfoneiro Oswaldinho do Acordeon. Completa o time o brilhante clarinetista carioca Paulo Sérgio Santos. O disco foi gravado ao vivo, em duas etapas, na Festa Uai, de Poços de Caldas, Minas, e no Teatro do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, no Estado do Rio. Abre com um número coletivo e vai para o solo de Elomar, que canta três números: Campo Branco, O Pidido" (assim mesmo, com "i") e Arrumação". No primeiro, conta o que vai acontecer quando chegar a chuva: "Quem bem lôva Deus sem bem/ Quem não tem pede a Deus qui vem/ Pela sombra do vale do ri Gavião/ Os rebanhos esperam a trovoada chover/ Num tem nada não também/ No meu coração/ Vô ter relempo e trovão/ Minh´alma vai florescer/ Quando a amada e esperada/ Trovoada chegar." O Pidido é outra crônica sertaneja. O cantor-narrador pede a alguém que passa em direção à feira: "Traga di lá para mim/ Água de fulô qui cheira/ Um nuvelo e um carin/ Trais um pacote de misse/ Meu amigo, ah se tu visse/ Aquele cego cantadô/ Um dia ele me disse/ Jogano um mote de amô/ Qui eu havéra de vivê/ Por esse mundo/ E morrê ainda em flô." A terceira música, Arrumação, narra outra cena, outro medo sertanejo: "Luã nova sussuarana vai passá/ seda branca no passsado ela levô/ Ponta d´unha lua fina risca no céu/ A onça prisunha a cara do réu/ O pai do chiquerô a gata comeu/ Foi um trovejo c´ua zagaia só/ Foi tanto sangue de dá dó." A prosa de acento regional de Elomar resgata, recupera, recria da maneira mais fiel possível a linguagem, a religiosidade, a mitologia do sertão. Elomar Figueira de Melo foi um homem do mundo. Formou-se em arquitetura, graduou-se na Europa, estudou violão clássico. Quando surgiu como compositor, no entanto, era um sertanejo, um criador de bodes das barrancas do Rio Gavião, no interior baiano. Moldou-se numa persona, conscientemente ou não, que tomou conta do criador - há que o acuse de se haver fantasiado de Elomar, o cantador, o que é uma imensa tolice - para melhor cantar aqueles mitos, aquele temor e aquela adoração religiosa, naquela precisa linguagem. O sertão que o presidente Lula ainda não foi visitar vive à margem do tempo, num limbo mais próximo da Idade Média do que do século 21. Esse estado de coisas incitou Ariano Suassuna a criar o Movimento Armorial, move o brincante Antônio Nóbrega, afasta dos grandes centros o genial compositor paraibano Vital Farias e tem sua expressão maior na obra de Elomar, um homem que abdicou do calendário para expor esse Brasil dentro do Brasil que obsedou Euclides da Cunha e deu o rumo à obra de Guimarães Rosa. Gênio da raça, Elomar é um criador à altura desses dois, um dos intelectuais mais importantes da cultura brasileira de todos os tempos.

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