Efeito sanfona

Foi no Rio Grande do Sul que o rei achou os cabras que fariam os seus foles e se encantou por uma graciosa guria

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Por Emanuel Bomfim
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O olhar marejado, o sorriso franco, a verve afiada: “Eu tinha raiva do Luiz Gonzaga”. Um pouco afoito, Luiz Carlos Todeschini desanda a falar. As memórias estão frescas, dá impressão que os fatos se deram poucas semanas atrás. O tempo corroeu o glamour, mas o engenheiro é valente. Assim como seu pai, Luiz Matheus (1906 - 1996), ele quer dar vida ao acordeão, tão honrado nas mãos do Rei do Baião. “Ele aparecia todos os anos lá em casa e ficava uma semana. Meu pai dava o melhor quarto para ele: o meu. Por isso, essa bronca da época de guri”, se justifica. O tratamento vip, além de celebrar uma duradoura amizade, tinha motivos de sobra. Luiz Gonzaga era adepto da sanfona Todeschini, carregava o nome da empresa por onde fosse requisitado seu xote endiabrado. Ao longo da carreira, ganhou quatro modelos do instrumento, sendo o último, de cor branca, o mais lembrado pelas pessoas. Virou até música com Benito de Paula: “Aquela sanfona branca / Aquele chapéu de couro / É quem meu povo proclama / Luiz Gonzaga é de ouro”. Antes das rodas de forró virarem moda, a Todeschini já desfilava pujança com sua fábrica de acordeões. A fama com os móveis é posterior à reputação adquirida com a produção das gaitas - conforme é conhecido o instrumento no Sul do País. Foi na cidade de Bento Gonçalves, em 1932, que o patrono da família deu início às atividades. “A história da Todeschini se confunde com a história do acordeão no Brasil”, explica Mano Monteiro, responsável pela retomada da empresa em 2008, desta vez em Porto Alegre. Com o ciclo imigratório do final do século 19, a tecnologia sobre as montagens das fisarmônicas desembarcou na serra gaúcha com os milhares de artesãos italianos que por ali se instalaram. O jovem e curioso Luiz Matheus era frequentador das pequenas oficinas, sempre de organização familiar e dedicadas também ao conserto de relógios e anéis. A convivência quase diária, o estudo sobre as matérias-primas, lhe deu segurança para fundar, tempos depois, a Grande Fábrica de Instrumentos Musicaes a Foles de Luiz M. Todeschini. Imponente, o nome era o retrato do acordeão no Brasil. Um instrumento tão presente nas casas quanto seria o violão décadas depois. A Todeschini, sob a figura carismática de seu fundador, dava passos largos na difusão do som dos foles. Mantinha até uma escola fixa em São Paulo com aulas de sanfona. Nas instalações em Bento, chegou a registrar 1.200 funcionários. O efeito Luiz Gonzaga era evidente. “Os maiores compradores não eram aqui no Sul. No Nordeste se vendia muito”, afirma, com orgulho, o herdeiro Luiz Carlos. O que para muitos poderia soar como jabá de agradecimento, para Gonzagão tinha motivações românticas. A canção que leva o nome da empresa, Garota Todeschini, foi uma investida do músico sobre uma das mais belas funcionárias da fábrica, de nome Maria Helena. Foi feita numa única noite, numa destas visitas a Bento, quando se instalava no quarto de Luiz Carlos. “Na manhã seguinte, todo mundo foi para a fábrica, e ele disse ao meu pai: ‘Seu Luis, manda chamar aquela menina, que eu fiz uma música para ela’. O Luiz Gonzaga, então, pegou a sanfona branca e, antes de tocar, proclamou: ‘Eu vou homenagear essa gaita e essa menina’”, lembra o engenheiro. Apesar do tributo, a musa não se entregou aos galanteios do artista pernambucano. Ainda hoje, já avó, sua beleza provoca iras ciumentas do marido, que impediu que a dona Maria Helena fosse entrevistada pela reportagem. “Ela realmente é uma avó muito bonita”, reforça Luiz Carlos. As moças bonitas da Serra Gaúcha logo não seriam mais personagens das canções açucaradas de Luiz Gonzaga. Nos anos 1960, o acordeão começou a perder prestígio e difusão. A constituição de uma cena forte da MPB deu vez ao violão e à guitarra. Mesmo o Todeschini, símbolo de excelência, caiu em desuso. “Nós ainda sobrevivemos alguns anos porque fazíamos acordeões para o México, com aquela marca Hohner”, diz o engenheiro. “Nós perdemos para a cultura estrangeira. Os Beatles não foram os culpados, eles só fizeram parte do pacote”, teoriza Mano Monteiro. Antes de fechar as portas, mal das pernas, a fábrica foi consumida por um grande incêndio, em 1972. A tragédia soterrou uma das linhas de produção mais engenhosas na montagem do instrumento, só comparável às de fabricação italiana. Em 40 anos de existência, a empresa colocou no mercado 170 mil acordeões, todos devidamente numerados. O volume impressionante de gaitas, um dia, pediria reparo. E lá estava Mano Monteiro, gaúcho de Santa Rosa, bandeonista, fascinado pela arte meticulosa de montar um fole. “Neste período, no começo dos anos 2000, começou a ter a necessidade de produzir peças. Tanto para nós, quanto para outros reformadores.” E assim como os italianos do começo do século passado, Mano montou sua oficina com integrantes da família, todos treinados por ele. A proximidade com os Todeschini permitiu que retomasse a produção das peças nos mesmos moldes de antigamente. “A marca é considerada extinta. Abrimos um processo, temos o direito de usá-la.” A fábrica de Mano está escondida no pacato bairro da Lomba do Pinheiro, num dos extremos de Porto Alegre. Não se vê mecanização, só jovens debruçados pelas partes diversas de um acordeão. Hoje, se você encomendar uma sanfona, vai levar ao menos um ano para recebê-la em sua casa. “Nós fabricamos uma Ferrari. Não temos prédio bonito, mas temos um instrumento impecável.” O preço corrobora a tese. O modelo mais simples custa R$ 10.700. O mais rebuscado, o Super 9, sai por R$ 18 mil. Após a estreia do filme sobre Luiz Gonzaga, a fila de pedidos só aumenta. Chambinho, o músico-ator que interpreta uma das fases da vida do Gonzagão no longa de Breno Silveira, usa um modelo branco, fabricado na oficina de Mano Monteiro. “O Chambinho foi uma alavanca. Estamos montando um instrumento de presente para ele.” Nem a demanda em alta faz Mano alterar seu planejamento. Mantém a meta de seis acordeões por mês, afinados à exaustão. Cada uma das mais de 500 palhetas passa ao menos três vezes pelos afinadores e pelos ouvidos dos rapazes. Segundo Mano, o instrumento que hoje é fabricado possui as mesmas características e peculiaridades daquele concebido décadas atrás em Bento Gonçalves. Algumas peças são importadas da Itália - da tradicional fábrica de acordeões Giulietti -, a madeira vem de Jaú (interior de São Paulo), o cetim da Argentina e o papelão do fole de Timbó, em Santa Catarina. Mas todo resto é moldado ali, com um perfeccionismo que beira a neurose. “A nossa produção está sempre atrasada.” Além de milenar, o som tirado dos foles teve ampla difusão no mundo e não ficou restrito apenas à música tradicional dos países em que se fixou. Mesmo no pop é possível observar a apropriação do acordeão nas formações de diversas bandas. Caso típico é dos norte-americanos do Beirut, aficionados pela música dos Bálcãs. Historiadores dizem que o instrumento teve suas primeiras versões na China, quase 3 mil anos antes de Cristo. Mas foi na Europa, no século 19, que ele adquiriu formato, nome e patente. Uma de suas variações mais famosas é o bandoneón, criado na Alemanha, mas projetado pelos artistas da região do Prata, em especial os argentinos fidelizados ao tango. Dizem os hermanos que só o instrumento é capaz de traduzir a melancolia e a profundidade do gênero que obteve fama pelas mãos de Astor Piazzolla. O jazz foi outro importante reduto na valorização do acordeão. Assim que desembarcou nos EUA, ele logo passou a ser utilizado em grupos de New Orleans, principalmente no ragtime. Depois, as orquestras incorporaram o instrumento, incluindo as big bands dos arranjadores Benny Goodman e Duke Ellington. Na França, o musette swing também ganhou espaço com Louis Richardet. O mais famoso do gênero, porém, foi o norte-americano Art Van Damme. Hoje, o grande é o francês Richard Galliano.

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