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Duelo de pianos em um mercado agonizante

Selos apostam nas obras de sempre, mas em instrumentos diferentes

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Por Redação
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Há algo de estranho em três sofisticadíssimos projetos pianísticos lançados este ano envolvendo notáveis músicos, de enorme prestígio internacional. Mais do que magníficas realizações artísticas (o que de fato são), mostram-se como sintomas do esgotamento dos pianistas convencionais que rodam obsessivamente em torno das mesmas obras-primas do cânone europeu clássico e romântico.

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Quando ilustres pianistas como Paul Badura-Skoda (de 86 anos), Andras Schiff (59 anos) e Alexei Lubimov (69 anos) entregam-se a este tipo de onanismo mental, acende-se logo um sinal amarelo. Pode ser que a culpa não seja deles e sim das gravadoras. Este pode ser o truque final delas, pacientes em coma irreversível há anos de UTI, para estimular o público a comprar o disco físico por preços médios de quatro a seis vezes superiores aos do download. Exemplo - o CD Duo, de Hélène Grimaud com a violoncelista Sol Gabetta, da Deutsche Grammophon: o físico custa R$ 89 em uma loja de São Paulo; o download no iTunes sai por R$ 23. Aonde isso vai parar?

A pergunta justifica-se. Parto logo para o delírio mais radical. No primeiro semestre, o selo alemão Genuin lançou um álbum duplo em que o vienense Paul Badura-Skoda interpreta a última sonata de Schubert, a famosa D. 960, em três instrumentos diferentes: num pianoforte feito por Conrad Graf em 1826 (Schubert pôs a última nota no manuscrito da D. 960 em 26 de setembro de 1828); no Bösendorfer nº 23274 fabricado em 1923; e no Steinway de concerto nº 569686, de 2004.

Para que isso? Para constatar o óbvio, ou seja, que no pianoforte de 1828, sem o duplo mecanismo de escape, ele leva 19’41 para tocar o monumental Molto moderato inicial da D. 960, contra 19’24 no Bösendorfer. Se aqui ele ganha 17 segundos, no Steinway faz a proeza de distorcer o movimento, fazendo-o em praticamente 5 minutos menos, em 14’44. Um crítico apontou que as pequenas células melódicas tendem a se perder num piano moderno (daí a vantagem do pianoforte de 1824); que no Steinway vem à tona as dificuldades técnicas da sonata; e que no Bösendorfer o melancólico lirismo íntimo típico de Brahms fica no primeiro plano.

Para mim, no pianoforte, a articulação é mais dura, e portanto ressalta-se mesmo. Quanto aos instrumentos modernos, o Bösendorfer é o que soa mais parrudo; o Steinway é mais lírico. Como se vê, filigranas excessivas, obsessivas. Conclusão: a praia de Badura-Skoda é a música historicamente informada, por isso a versão em pianoforte é a melhor. Um álbum duplo que poderia ser simples, sem nenhuma perda estética.

Duas Diabelli. O pianista húngaro Andras Schiff, um dos maiores do nosso tempo, lança pela ECM um álbum duplo onde interpreta duas vezes as Variações Diabelli de Beethoven. Primeiro acopladas à sonata opus 111 num Bechstein de 1921, o instrumento preferido de dois grandes símbolos do pianismo da primeira metade do século 20, Wilhelm Backhaus e Artur Schnabel. O problema é que não há praticamente nenhum diferencial sonoro do Bechstein em relação aos atuais Steinway ou Bösendorfer.

Em contrapartida, o segundo CD é deslumbrante. Schiff foi aos manuscritos das Diabelli e as reinventa de modo genial num pianoforte com pedais extras contemporâneo exato de Beethoven. Acopla ao CD as Bagatelas opus 126. A ponto de você pensar: ora, Schiff poderia ter lançado só este CD historicamente informado. Isto sim, é novidade. Do jeito que está, sinceramente, parece over.

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O prazer da cópia. O projeto mais coerente é o de Lubimov, uma iniciativa conjunta do museu de instrumentos da Cité de la Musique de Paris com a gravadora Alpha. Iniciado em 2008, só agora se transforma num CD-livro de 80 páginas que de fato justifica você pagar um preço mais elevado. Textos e fotos mostram em detalhe o processo de fabricação de uma cópia de um pianoforte Erard de 1802 pelo lutiê inglês Christopher Clarke. E, musicalmente, Lubimov de fato nos leva a uma "viagem" sonora inédita por três das sonatas mais conhecidas de Beethoven - Ao Luar, Waldstein e A Tempestade -, compostas por ele neste Erard que comprara do fabricante francês. Encomendado em 1801, era um modelo novo, na época chamado de en forme de clavecin. Como os músicos exigiam cada vez mais potência do instrumento, Erard fez estes pianos em forma de cravo, os primeiros a ter a forma que hoje é chamada de "cauda".

Além disso, Beethoven queria experimentar o inovador mecanismo de pedais dos pianos Erard, muito mais eficientes - sobretudo o do chamado una corda. Nos pianos modernos, o una corda é acionado pelo pedal esquerdo. O mecanismo desvia levemente a posição dos martelos, fazendo com que a nota, em geral produzida quando o martelo atinge ao mesmo tempo as três cordas, soe mais suavemente, pois com este artifício ele atinge somente duas. No tempo de Beethoven, atingia apenas uma corda, daí o nome pelo qual ficou conhecido o recurso.

Havia duas tendências básicas entre os fabricantes de pianos no começo do século 19: os ingleses, Broadwood à frente, buscavam maior robustez e potência sonora; e os franceses, com Erard, batalhavam por mais velocidade no toque, e, portanto, aligeiravam as sonoridades. O modelo em forma de cravo fez muito sucesso. Erard vendeu 601 deles em 1802, até para a América do Sul, escreve Thierry Maniguet, do Museu da Música da Cité de la Musique.

Bem, agora você pode avaliar com justeza o magnífico CD-livro de Lubimov. O museu da Cité de la Musique possui um exemplar perfeito de um Erard de 1802. Só que o instrumento não suportaria ser tocado. Assim, nos últimos cinco anos, e depois de 3.600 horas de trabalho, Christopher Clarke construiu a réplica exata em que Lubimov toca estas sonatas tão conhecidas.

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Não esperem o brilho dos pianos modernos. Nem se espantem com o som meio abafado. Depois de alguns minutos, nossos ouvidos se acostumam, e aí é possível perceber detalhes incríveis. Há movimentos que soam radicalmente diferentes. No Rondó tão conhecido, último movimento da Waldstein, Lubimov fez, de algum modo e não sei por qual mágica, a sonoridade de Beethoven aproximar-se do piano preparado inventado por John Cage no século 20. Parece maluquice, mas depois de ouvir você corre naturalmente para o livreto querendo saber se Lubimov não colocou uma borracha, parafuso ou objeto de metal entre as cordas do instrumento, como fez Cage em seu piano preparado. Para mim, essas sonoridades são espantosas. Uma revelação.

Uma última fofoca revelada pelo livreto: pois fiquem sabendo que Beethoven deu calote, jamais pagou pelo instrumento. Lá por volta de 1824, quando estreou a nona sinfonia e ele já era unanimidade na Europa, cultuado como gênio da música, a Erard espalhou que lhe dera o instrumento de presente.

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