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Dori Caymmi canta a sua geração

Em seu novo disco, Contemporâneos, ele revê a obra de Milton, Chico, Caetano, Gil...

Por Agencia Estado
Atualização:

Acaba de chegar às lojas o novo disco de Dori Caymmi. Chama-se Contemporâneos. É uma homenagem do músico aos companheiros de geração. É uma visita a certa música brasileira que o mercado escondeu. Um aceno para quem ainda acredita que canção popular combina com linguagem articulada. Mais do que qualquer outro disco de Dori, Contemporâneos é um manifesto - e todos os seus trabalhos são manifestos, busca da tradução musical de brasilidade na linhagem fundadora de Villa-Lobos, sons do sertão de Guimarães Rosa e acordes do velho Caymmi, família sonora que o une a Tom Jobim e Edu Lobo. Manifesto: essa expressão existe e num tempo de mídia menos mesquinha foi até - e muito - popular. Contemporâneos não é, naturalmente, uma produção brasileira. O selo original é o norte-americano Horipro Inc., e a distribuição brasileira, da gravadora Universal. Foi gravado e mixado entre novembro de 2001 e o janeiro seguinte, entre estúdios do Rio e de Los Angeles, onde Dori mora. A Universal recebeu o disco - pronto - em fevereiro do ano passado. Levou 14 meses até encontrar espaço na agenda para, entre um pagodeiro de butique e caipira metido a caubói, pôr o disco na rua. Contemporâneos é um disco magistral e por isso mesmo não cabe o conformismo do "valeu a pena esperar". Valeu coisa alguma. Se houvesse saído antes, Dori poderia ter tocado adiante outro projeto, já teríamos ouvido este e estaríamos ouvindo mais um disco; o raciocínio vale para outras obras nobres tratadas com descaso. Pequenos assassinatos culturais. Nem tão pequenos. O disco traz alguns dos contemporâneos como convidados especiais: Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo; os irmãos do titular, Nana e Danilo Caymmi; e o novato Renato Braz, que no ano passado venceu a edição de intérpretes vocais do Prêmio Visa. "Renato Braz é minha esperança num Brasil mais brasileiro", escreve Dori, num texto do encarte do CD. Renato canta com o autor a única das 12 músicas do disco que é de Dori , Flor das Estradas (a letra é de Paulo César Pinheiro). Dori explica que ele e o parceiro admiram muito as músicas de Ari Barroso e Luís Peixoto. "Foi pensando neles que escrevemos Flor das Estradas", escreve. O encarte traz um pequeno texto de Dori sobre cada canção. No que se refere a Coisas do Mundo, Minha Nega, obra-prima de Paulinho da Viola, Dori escreve, modestamente - erradamente - que cantar nunca foi o seu forte. Samba, menos ainda - o que também não é verdade. "Mas eu nasci no Andaraí e passei minha infância em São Cristóvão e Madureira; a música de Paulinho tem o sabor divino do subúrbio", completa o raciocínio, e isso é inegável. Lançado em 1969, o samba, lento e delicado, fala das andanças de um personagem pela noite, viola debaixo do braço. Encontra um daqueles eternos queixosos, canta-lhe um samba; encontra um bêbado reincidente, canta-lhe um samba; encontra o corpo de alguém que morreu para provar que tocava pandeiro melhor - não há o que cantar: "Não peguei minha viola/ Parei, olhei, vim-me embora/ Ninguém compreenderia/ Um samba naquela hora", dizem os versos da estrofe final. Mas o mesmo personagem reconhece que as coisas estão no mundo - só que ele precisa aprender. O olhar é crítico, mas não arrogante. Enxerga o errado em volta, o que não é álibi para suas faltas. Numa ordem que talvez não tenha sido proposital, Dori põe Caetano Veloso cantando a música seguinte, Januária, samba do primeiro disco de Chico Buarque. Dori sempre foi muito crítico com Caetano e com Gilberto Gil. Jamais concordou com a maneira como eles permitiram que modismos, ditames de mercado, influenciassem a criação. Continua achando a mesma coisa, mas acha que foi muito rigoroso na cobrança. Nada de mea culpa, mas um olhar mais generoso. E uma reconciliação com a própria história - Dori era produtor na antiga gravadora Philips (hoje a Universal, que distribui Contemporâneos), que contratou Caetano Veloso mas não o considerava comercial o suficiente para fazer um disco de estréia sozinho. Daí nasceu Domingo, que Caetano dividiu com a também estreante Gal Costa. Dori assinou alguns dos arranjos do disco. Caetano escreveu, na contracapa, que o "risco de beleza" que o elepê corria seria devido aos arranjos de Dori (e aos de Edu Lobo). Se Caetano canta Chico, Chico canta Caetano: a música seguinte é Sampa. "Quando tive a idéia desse projeto, meu primeiro pensamento foi ouvir Chico Buarque cantando Sampa, e ficou maravilhoso", escreve Dori. O disco segue com Ponta de Areia, de Milton Nascimento e Fernando Brant, participação de Danilo Caymmi; Lembra de Mim, de Ivan Lins e Vitor Martins, participação de Nana Caymmi; Choro Bandido, de Edu Lobo e Chico Buarque, participação de Edu; Viola Enluarada, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle; Essa Mulher, de Joyce e Ana Terra; Bala com Bala, de João Bosco e Aldir Blanc; Cão sem Dono, de Sueli Costa e Paulo César Pinheiro, Procissão, de Gilberto Gil; e fecha com a já mencionada Flor das Estradas. De fora Algumas canções não entraram no repertório porque Dori não conseguiu dar-lhes o tratamento correto. É o caso de Atrás da Porta, de Francis Hime e Chico Buarque; outras fora deixadas de fora por falta de espaço, mesmo - como Meu Bem-Querer, de Djavan, ou Beijo Partido, de Toninho Horta. Aceita que haja alguma desordem na cronologia - Ivan Lins e Sueli Costa surgiram depois dele, já nos anos 70. "Mas embora sejam um pouco mais moços, eles são musicalmente da mesma época", avalia. "O elo é a Elis Regina, que gravou tudo isso" - foi ouvindo Elis cantar 20 Anos Blue, de Sueli Costa e Vítor Martins, que Dori soube da existência da compositora mineira. Dori Caymmi produziu Contemporâneos, fez os arranjos, toca violão em todas as faixas, à frente de grupo formado por músicos norte-americanos (o pianista Bill Cantos, o baterista Michael Shapiro, o contrabaixista Jerry Watts) com quem usualmente trabalha. Completa a base o percussionista brasileiro Paulinho da Costa. As cordas também são brasileiras. Contemporâneos não é um disco que se esgote à primeira audição. Não é um "melhor de" nostálgico, uma antologia de sucessos, um recorte saudosista. Se tem caráter ideológico de resgate de linguagem, embute, ainda, o peso da revisão que o tempo dispõe: cada uma das 12 canções chega redimensionada, com os valores melhor examinados, segredos afinal revelados. Milton Nascimento - para ficar num exemplo - certamente só agora irá saber da grandeza de Ponta de Areia. Foram necessárias quase três décadas para que o cantochão mostrasse, pelas vozes de Dori e Danilo, seu absoluto esplendor - por que não? - contemporâneo.

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