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Dona Zica, mangueirense de coração

As amigas Dona Neuma e Dona Zica que foram os símbolos maiores da escola. Foi para Zica que Cartola, seu marido, compôs As Rosas não Falam

Por Agencia Estado
Atualização:

No pé do morro da Mangueira, duas casas separam aquelas em que moravam Dona Neuma e Dona Zica, símbolos maiores da escola, tão identificadas com ela quanto a bandeira raiada de verde e rosa. Neuma Gonçalves da Silva, filha de Saturnino Gonçalves, fundador da escola, morreu no dia 17 de julho de 2000. "Agora estou sozinha", chorou, no enterro, a amiga inseparável Euzébia Silva Oliveira, a Zica. Segunda mulher de Cartola, Zica nasceu no dia 6 de fevereiro de 1913, no bairro da Piedade, zona norte carioca. Mudou-se para a Mangueira quando fez 11 anos. Tinha 15 quando o grupo de compositores de que participava o futuro marido fundou a Mangueira, em abril de 1928. "No primeiro ano, tinha pouca gente, e em 1929 a escola se organizou melhor", lembrava Zica do primeiro desfile mangueirense. Naquela ocasião, Cartola era casado e Zica nem pensava em chegar perto do compositor. O namoro deles só veio no início dos anos 50, num barracão do morro da Mangueira - numa festa em que a pastora e cozinheira servia sua para sempre famosa feijoada. Zica já havia sido casada e tinha dois filhos. Casou-se com Cartola, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, no Rio, em 1964. Para celebrar, Cartola compôs o samba Nós Dois, sobre o qual comentou: "Não sei por que, eu agora só sei fazer samba romântico. Foi para Zica, quando moravam no distante subúrbio de Jacarepaguá, que, alguns anos mais tarde, Cartola escreveu o clássico As Rosas não Falam...Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti. No mesmo ano, o casal abriu o restaurante Zicartola, na Rua da Carioca, no centro do Rio, que tinha como atração, de um lado, a cozinha da pastora e, de outro, a música do compositor e de seus amigos. Foi na época do show Opinião (com Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale), espetáculo que trazia de novo ao primeiro plano o samba que a bossa nova, com sua estética intimista, havia banido do cenário dito de bom gosto. O Zicartola era freqüentado por sambistas, intelectuais, estudantes, jovens compositores. Durou pouco tempo, mas foi importante para o contato da juventude universitária com a assim chamada cultura popular. O Zicartola ganhou uma versão paulistana, em 1974, em Vila Formosa, também de vida curta. Não custa lembrar que Cartola foi famoso nos anos 30 e 40. Sumiu de cena no fim dessa última década e houve quem pensasse que havia morrido. Nesse período, Deolinda, sua primeira mulher, morreu. Cartola foi redescoberto em meados dos anos 50, quando já namorava Zica. E o melhor de sua obra foi composto na maturidade. Impossível não associar o ressurgimento e a depuração da obra com a presença da companheira do restante da vida. Esquecido pela escola, Cartola deixou o morro. Voltou para reencontrar Zica: "Ela foi a mulher que segurou a barra quando eu, fraco, tomava duas garrafas de cachaça por dia, enquanto ela vendia marmitas pela cidade", contou, há muitos anos. Não foi só. Mesmo tendo voltado à cena musical, Cartola não ganhava dinheiro - nem como compositor, nem como contínuo do Diário Carioca, para onde o havia levado o jornalista Jota Efegê. O dinheiro melhorou quando o diretor francês Marcel Camus veio ao Brasil, para filmar o Orfeu do Carnaval: - o compositor Cartola não participou do trabalho, mas a cozinheira Zica era responsável pela alimentação da equipe. Por interferência de um político carioca, o casal arranjou uma casa para morar, no centro da cidade. Cartola compunha, Zica distribuía marmitas. Mais tarde, já com renda vinda da música e com discos gravados, o compositor construiria uma casa na Mangueira, ocupada pelo casal até 1978, quando se mudou para Jacarepaguá. Cartola queria um lugar calmo para continuar compondo - mas logo depois descobriu que estava com câncer. Cartola morreu em novembro de 1980. De volta ao morro, Zica transformou sua casa num misto informal de pensão, hospital centro de associação de moradores - além de ponto de encontro dos famosos e anônimos da comunidade. Lugar de mesa farta de comida e bebida servida por uma mulher que jamais bebeu nem fumou. Sambista, não gostava de bailes: "Muita gente em ambiente fechado me deixa sufocada", dizia. Outro prazer, além da cozinha, era preparar as - ou supervisionar o preparo das - fantasias da escola. Considerava-se, ao lado de Neuma, "costureira mangueirense de coração". Era mais do que isso. Era parte fundamental do coração da Mangueira. Veja galeria de imagens

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