Documentário ‘Cássia Eller’ traça o perfil de uma vida intensa da intérprete

Paulo Fontenelle, diretor de filme sobre Arnaldo Baptista, colheu documentários de Nando Reis, Zélia Duncan e Lan Lan

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:
Cantora Cássia Eller, em imagem do documentário sobre a vida dela Foto: Divulgação

Nando Reis, Zélia Duncan e Lan Lan dão depoimentos emocionados e emocionantes em Cássia Eller. A companheira de muitos anos, Maria Eugênia, ajuda a traçar o perfil íntimo de uma vida que foi intensa. A própria Cássia chega a dizer que a música foi uma fuga da sua incapacidade de se relacionar socialmente. Talvez Cássia, o filme, não seja tão bom quanto Loki, outro documentário musical do diretor Paulo Fontenelle (sobre Arnaldo Baptista). Mas é melhor que Dossiê Jango, do mesmo Fontenelle, sobre o ex-presidente do Brasil, derrubado pelo golpe militar.

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Fontenelle conta que, logo após Loki, ouvindo Cássia Eller cantar, pensou quão pouco sabia sobre a artista. A curiosidade levou-o a pesquisar. Descobriu uma figura ‘incrível’, como diz. "A Cássia era aquela força no palco, mas era muito tímida. Essa dualidade começou a me fascinar. A primeira coisa que fiz foi mandar um e-mail para a Eugênia, falando na possibilidade de um filme. Ela demorou um mês para responder, já achava que não ia rolar. Disse que o Chicão (filho da Cássia) tinha gostado de Loki. E me deu carta branca. Disse apenas que não queria que eu endeusasse nem demonizasse a Cássia. Liberou para abordar tudo. As drogas, os casos fora da relação. Foi uma coisa muito forte."

O diretor ainda trabalhava em Dossiê Jango quando iniciou a pesquisa iconográfica. Ambos os filmes demoraram quatro anos para ficar prontos. Cássia é uma produção da Migdal, de Iafa Britz, com a GNT. O filme estreia hoje com 70 cópias. Esgotada a fase do cinema, deve ir para o DVD e a TV. Fontenelle conta: "Não existe nenhuma previsão de lançar a trilha do filme, mas o Chicão descobriu gravações inéditas da mãe e, daqui a pouco, quase junto com o filme, essa Cássia inédita, da fase de Brasília, chegará a público em DVD."

Foram muitas as possibilidades de abordagem imaginadas por Fontenelle antes de começar a filmar, logo após o lançamento de Loki. No seu imaginário, chegou a haver uma versão em que o espectador descobriria Cássia pelo olhar do filho. Chicão seria o protagonista, em busca da mãe, que morreu quando ele era bebê - e o fato causou aquele imbróglio judicial, a briga na Justiça pela guarda do filho. O avô, pai de Cássia, brigava pelo neto ou pelo espólio? A questão perpassa toda uma parte de Cássia, não deixando de ser o elo com Dossiê Jango, da mesma forma que a intenção de lançar luzes sobre o artista (e o homem, no caso, a mulher) é o vínculo com Loki.

"Desisti de fazer o filme pelo olhar do Chicão porque ele é tímido. Percebi que não daria conta. Mas ele aparece, e bem, no final. Cássia foi um furacão no palco. Não carregava bandeiras. A bandeira era ela, com seu comportamento libertário e provocador. O mais marcante é que essa mulher, pós-mortem, continuou influenciando a sociedade brasileira. Aquele juiz, ao dar a guarda do filho para a companheira de Cássia, fez o que ela gostaria. Uma verdadeira revolução legal."

Durante quatro meses, Fontenelle brigou com o material. Ele tinha 400 horas de material, entre arquivo e gravações próprias. Como reduzir tudo isso para (menos de) 2 horas? "Tenho entrevistas muito boas com Milton Nascimento, Frejat e Luiz Melodia. Achei que serviria melhor ao material se contasse a história convencionalmente." Convencional talvez não seja a melhor definição. Linearmente. Do começo em Brasília ao teatro com Oswaldo Montenegro, o filme mapeia a formação e o estouro de Cássia. Mostra sua força no palco, a morte. E prossegue com a briga na Justiça. Era única e era múltipla. Do samba ao rock pesado, Cássia tinha voz e temperamento para abarcar tudo. Chico Buarque e Edith Piaf. O filme cresce quando ela canta Malandragem ou Segundo Sol.

Cássia foi usuária de drogas. Até por conta disso, a mídia sensacionalizou sua morte, em 2001. Teria sido por overdose. A versão ficou. O filme esclarece que foi enfarte. São muitas histórias, muitas parcerias (na arte como na vida). De Cássia Eller, pode-se dizer que amou demais, viveu demais. Como Piaf, ela dizia que não lamentava nada. À sua maneira, foi fiel à companheira, que foi, e é até hoje, uma mãe para Chicão. Entre os muitos momentos intensos de Cássia está aquele em que mãe e filho recebem um prêmio póstumo atribuído a Cássia. E, depois, quando ele fala, no fim, sobre essa mãe que mal conheceu, e foi descobrindo. Cássia é um belo filme. Talvez seja um pouco redundante, insistindo em certos pontos, depoimentos. É intenso. "Tinha de ser. A Cássia era intensa", resume Paulo Fontenelle.

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ENTREVISTA

Maria Eugênia Martins, companheira de Cássia

‘Ela foi mais que a sapatona que cuspia no palco’

Por que você apoiou o filme?

Para destruir o estereótipo no imaginário das pessoas. Para muitos, Cássia ficou só como a sapatona que cuspia no palco. Ela foi muito mais.

Que canções inéditas são essas?

Chicão (o filho) descobriu com uma ex-namorada de Cássia uma fita com músicas inéditas. Apesar da falta de qualidade técnica, é um regalo para os fãs. / L.C.M

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Cássia Eller, em ação no Rock in Rio 2001 Foto: C. Leite/AE

 

Uma força da natureza

 

Pedro Antunes

Um furacão do bem. Uma entidade incontrolável, marcante, avassaladora. Cássia Eller nunca foi "uma garotinha esperando o ônibus da escola sozinha", nem mesmo "uma menina má", como dizia a letra de Cazuza e Frejat, Malandragem, um dos maiores sucessos na voz selvagem dela. Era a peça que faltava na música brasileira quando surgiu, em meados dos anos 1980 - o primeiro álbum veio em 1990 -, e quando morreu, em 29 de dezembro de 2001, aos 39 anos, deixou um espaço no quebra-cabeça, mesmo que uma série de versões genéricas e pasteurizadas dela tenham surgido, amparadas por gravadoras, em tentativas de empurrá-las nossa goela abaixo.

Cássia era aquilo tudo que a turma do politicamente correto detestava: falava suas bobagens, não tinha vergonha do próprio corpo e não escondeu o vício em cocaína e, depois, álcool. Se colocava entre várias minorias, como mulher, homossexual, mãe solteira, mas soube enfrentar tudo isso muito bem.

Imagine se, no próximo Rock in Rio, marcado para setembro deste ano, uma intérprete de voz grave estivesse entre as atrações? Ela levaria bordoadas dos roqueiros de plantão? É claro. Volte, então, a 2001. Se você não estava lá, assista ao DVD, ouça o disco ao vivo, mas não perca a performance de Cássia no festival carioca, meses antes de morrer. Ela subiu ao palco ainda sob o sol carioca, estreando as atividades na arena principal, horas antes de Beck, Foo Fighters e R.E.M.. Ensandecida, como era de se esperar. É de lá a icônica imagem na qual ela levanta a blusa e exibe os seios, após uma versão de Come Together, do Beatles, ao lado do Nação Zumbi. Ao fim daquela performance, ela emendou um cover de Smells Like Teen Spirit, do Nirvana, ex-banda de Dave Grohl, líder do Fighters que tocaria mais tarde. Quer algo mais rock que isso, bebê?

O ano da morte de Cássia foi um dos mais agitados e grandiosos da carreira dela. Álém da aclamação no Rock in Rio, a intérprete gravou o disco Acústico MTV, o que, naquela época, era considerado um marco na carreira dos artistas. O trabalho ultrapassou a marca de um milhão de cópias vendidas, tornando-se o maior sucesso dela.

Nascida no Rio de Janeiro, passou por Belo Horizonte, Santarém e Brasília. Embora tenha começado a carreira ainda jovem, na década de 1970, foi somente em 1990 que veio Cássia Eller, o disco de estreia, produzido por Wanderson Clayton e lançado pela extinta gravadora Polygram. Frejat, autor de Malandragem, com Cazuza, estava lá e gravou as guitarras. Das 11 músicas do álbum, apenas uma delas, a instrumental Lullaby, era da autoria dela.

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E isso dizia muito sobre a intérprete, Cássia não era compositora e não fazia questão de ser. O seu grande trunfo era saber escolher a quais canções emprestaria a voz, mesmo quando a escolha fosse questionável. Como foi o caso de O Marginal, segundo álbum dela, para o qual Cássia escolheu canções menos pop de Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. Qual artista atual tomaria atitude igual?

Aproximou-se de Nando Reis em 1999, com quem teve o mais forte laço artístico. Conheceram-se dois anos antes da morte dela, em um convício intenso. Não por acaso, All Star, grande hit dele, foi uma cação criada para ela, uma referência ao estilo de tênis preferido de Cássia. Esta, Relicário e Luz dos Olhos são outras das músicas dele que estavam constantemente no repertório da carioca. Como parceiro que era, Nando foi chamado para criar a trilha do musical sobre a vida dela.

Cássia deixou Chicão, o filho, e Maria Eugênia, a companheira, cedo demais. Tinha apenas 39 anos, dias antes do fim de 2001, e uma vida inteira pela frente. Não gravou tantos discos, seja de estúdio ou ao vivo, os seus preferidos, quanto gostaria. Deixou tudo antes demais, inclusive a saudade.

LINHA DO TEMPO

Primeiro disco

O álbum, que leva o nome de ‘Cássia Eller’, saiu em 1990

Parceiro

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Cássia e Nando Reis passaram a trabalhar juntos em 1999

Baladas

Com ‘Com Você... Meu Mundo Ficaria Completo’, de 1999, ela inaugura um estilo mais sereno

Sucesso

O ‘Acústico MTV’, de 2001, vendeu um milhão de cópias

Rock in Rio

O ápice da carreira no festival, meses antes de morrer

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