Doces Bárbaros mostram inquietude e beleza

Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia reuniram-se em um palco montado no Ibirapuera, após 26 anos, para um show que esbanjou talento

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Por Agencia Estado
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Depois de 26 anos, os Doces Bárbaros voltaram. Para duas apresentações, apenas. A primeira foi no sábado, na Praça da Paz, no Parque do Ibirapuera. A segunda estava prevista para ontem à noite, em Copacabana, no Rio. Filmado e gravado, o show deve virar disco e DVD. A edição depende da aprovação do resultado pelos integrantes do grupo, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa. Foi o último show da Praça da Paz, que criou tradição de apresentar espetáculos musicais gratuitos no fim de semana, sempre com público amplo. Mas não foi o último show do Parque do Ibirapuera. A partir do ano que vem, as apresentações serão feitas em outro lugar, dentro do parque, num palco projetado por Oscar Niemeyer. A mudança pretende atender a exigências de ambientalistas e da platéia que tem, ali, um dos mais generosos espaços públicos de entretenimento da cidade. O retorno dos Doces Bárbaros encerrou a temporada 2002 do projeto Pão Music, parceria da Prefeitura com o grupo Pão de Açúcar. Os quatro baianos não se apresentavam juntos desde que, em 1976, Maria Bethânia teve a idéia de criar o grupo, para lembrar o tempo em que, no início da carreira, eles se apresentaram em Salvador no espetáculo Nós, por Exemplo, nos anos 60. Em 1976, os quatro tinham carreiras individuais sólidas. Em tempo ainda de ditadura militar, haviam trocado a canção de protesto ostensiva, comum, então, pelo desafio comportamental. Gilberto Gil disse que, naquele encontro, nos anos 70, não havia intenção política. Era, afirmou, uma celebração. "Uma brincadeira com nós mesmos", contou, no início da semana. O fato é que, pelo peso dos nomes, era impossível não ver ali atitude política. Entendida, por parte da crítica, como escapismo - o apelo pop, da instrumentação ao visual extravagante - e, por outra parte, como manifestação de independência. Fosse como fosse, extravagância e independência, sob ditadura, são atitudes políticas. Caetano Veloso usava cabelos compridos e um bustiê. Gilberto Gil vestia um collant branco com o símbolo de xangô em vermelho, no peito. Gal Costa e Maria Bethânia ditavam o modelo das hippies tropicais. Imagens daquela época foram mostradas no sábado, no telão do fundo do palco. Ao vivo, contrastando, os quatro músicos usavam roupa convencional. Eles estiveram juntos no palco a maior parte do tempo, com direito a solos. Caetano Veloso escolheu solar Drão, canção de Gilberto Gil. Gal Costa preferiu Eu te Amo, de Caetano. Gil fechou o seu solo com o xote Esperando na Janela, do filme Eu Tu Eles. Maria Bethânia fez a única menção política. Cantou Viramundo, canção de protesto dos primeiros tempos de Gilbeto Gil: "Ainda viro esse mundo/ Em festa, trabalho e pão." Eleitora declarada de Luís Inácio Lula da Silva, perguntou, ao microfone: "Essa música é antiga, mas tem tudo a ver com a cara do Brasil de hoje, não tem?" Sim, respondeu a platéia. Gilberto Gil compôs a única canção inédita do espetáculo, que durou quase duas horas, teve 22 números e terminou com Gente, de Caetano Veloso: "Gente é pra viver/ Não pra morrer de fome." A novidade de Gil foi a marcha-rancho Outros Bárbaros: "Outros bárbaros são doces, são cruéis, seguem vindo/ Vivendo seus papéis de mocinhos e bandidos/ Será que ainda têm muito o que fazer na cidade?" - com a variação de "Será que ainda temos muito o que fazer na cidade?" Maria Bethânia, Gilberto Gil e Caetano Veloso (Gal Costa, bem menos), personalidades imperativas, prosseguem fazendo perguntas. Não ditam, hoje, revoluções, mas são presenças ativas e importantes. No show de sábado (que foi aberto por uma apresentação de 20 minutos das crianças do projeto social Meninos do Morumbi), no Ibirapuera, ofereceram ao público música de primeira qualidade, alegria, emoção e alguma ansiedade - terão, ainda, o que fazer na cidade? Há quem considere a dubiedade - a dúvida - assim posta como mera jogada promocional. Melhor vê-la como a marca da inquietude de criadores que, na marca dos 60 anos, permanecem tentando conciliar indignação e beleza. Impõem-se pelo talento que, na (re)volta dos Doces Bárbaros, ganhou puro estado de arte.

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