Do Waits mais simples ao mais assustador

Em Alice, o compositor mostra sua face mais lírica, enquanto em Blood Money o clima é de desespero

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Por Agencia Estado
Atualização:

A melancolia lírica da música de Alice não é estranha na obra de Tom Waits, mas ganha, aqui, uma vestimenta que a torna singular. Quase não há instrumentos eletrônicos, substituídos, para configurar a textura harmônica, por cordas - o violoncelo de Matt Brubek, o violino de Carla Kihlstedt - e a instrumentação completa-se com sopros (quase sempre sax ou clarineta), cordas dedilhadas com sutileza. A ficha técnica não traz assinatura para os arranjos, mas eles são de Tom Waits. Têm a sua marca, ainda com a vestimenta instrumental pouco comum na obra. Repetem a atmosfera de crítica e desencanto presente no mais que o compositor fez (a que foge a trilha sonora para O Fundo do Coração, mencionada no texto acima; escrita para um filme sobretudo otimista, reveste-se de algum otimismo - o otimismo possível a Tom Waits). Os arranjos para as canções relativamente simples de Alice (relativamente: as composições de Waits têm estrutura musical bastante convencional e tornam-se peculiares pela atmosfera em que envolvem o ouvinte) enquadram-se em certos cânones da música contemporânea, pós-minimalista, embora carreguem algo daquela escola. No uso da instrumentação, uma composição aproximada seria a de Nino Rota para a música felliniana de Casanova. Violino e violoncelo, dedilhados ou arqueados, dialogam em intervalos atonais, destruindo a possibilidade da construção de climas românticos. Esse uso subverte a quase obviedade melódica de valsas e canções quaternárias, destruindo sua solidez formal de definição. Naturalmente que, para essa destruição, colabora - é indispensável - a intervenção vocal do compositor. A voz de Tom Waits não se parece com nenhuma outra voz do universo da música ocidental. É rouca, mas não é só isso. Parece sair de poços recônditos, das profunidades da compreensão humana. Não há como traduzir aquela voz em palavras escritas (e não parece ter havido, até hoje, quem a reproduzisse cantando). É a voz do fim do mundo. O mundo está acabando? Não é nisso que acredita o bardo nova-iorquino. Foi de Nova York que ele se revelou para o mundo, embora a Europa lhe tenha dado o primeiro aval e boa parte de sua obra, pelo menos para palco, estréie primeiro no velho continente e ele trabalhe com cineastas não-tipicamente americanos, com Coppola, Jarmush, Altman. Pois sim, o mundo não acabou, para Tom Waits, mas merece reparos - e é disso que ele trata. Parte do princípio (é mais fácil entendê-lo em sua poesia, mas está nas melodias e arranjos, também) de que se caminha para o fim do ser o humano - e é preciso falar com a voz de quem se antecipou à catástrofe do desaparecimento da espécie para alertar a espécie do que a espera em breve, se não agir com presteza e segurança. Muito disso aparece com todas as palavras - frases que falam da impossibilidade de voltar ao porto, dos ossos que se escondem sobe o belo rosto, de alguém que só pode olhar enquanto o outro (o ser amado) desaparece, de alguém que continua ali, embora ninguém (ou a pessoa que importa) o tenha visto. Pequenas tragédias e grandes tragédias. Na melancolia lírica de Alice, pequenas tragédias, e de lá saem as imagens livremente citadas no parágrafo anterior. Em Blood Money a barra é mais pesada. Esse é o disco mais assustador de Tom Waits. Parece ser cantado por aquele louco que ele encarna na jaula do castelo do conde Drácula. É o desepero. A miséria é o rio do mundo - título da primeira canção. É da miséria que se alimenta o homem, e não há deuses que o redimam - tanto Deus quanto o Diabo erguem capelas e tudo o que se pode dizer da espécie humana é que não há nada de bom no homem. A atmosfera é opressiva, e muitas canções têm ritmo marcado (embora não sejam marciais: são pesadamente obedientes aos tempos fortes, às marcações estruturais); outras derretem-se. Como se derrete uma canção? Waits desfaz, desconstrói o que uma valsa ou um canto que remete ao tradicional celta - Dalí derreteu relógios e outros objetos, em suas telas surrealistas. Tom Waits derrete valsas e cançonetas. O relógio derretido de Dalí continua sendo um relógio. A valsa desconstruída de Waits permanece valsa, embora sua utilidade como tal tenha deixado de existir. O compasso ternário da valsa é usado, em geral, para expressar sentimentos delicados, para mencionar episódios românticos ou propor atitudes amorosas. Claro que Tom Waits não foi o primeiro a pegar esse padrão, deformá-lo e confrontá-lo com seu oposto, para provocar o estranhamento. Mas, pelo menos na canção popular, ninguém logrou efeitos tão assustadoramente eloqüentes quanto ele. Blood Money baseou-se na peça Woyzek, escrita, em 1937, pelo poeta alemão Georg Buchner. A obra original baseava-se num fato real - a história de um soldado traído que mata sua amada. O experimento de Bob Wilson-Waits-Brennan usa a história, que não tem necessariamente data, para forma de teatro musical, numa experiência vanguardista que a crítica internacional aplaudiu. Se Alice é um disco que pode ser ouvido, por exemplo, no carro, enquanto você enfrenta o engarrafamento (embora nem todas as faixas sejam assim tão cômodas), a audição de Blood Money exige, talvez, um pouco mais de preparo emocional. Mesmo quem não entenda as letras saberá que ali se fala de desaparecimentos, de catástrofes, de destruições. Não de catástrofes como a destruição das torres gêmeas do World Trade Center, no ano passado. Mas da catástrofe que é o ser humano haver permitido a si o grau de degradação que leva àquela destruição - e à construção daqueles monumentos à soberba. Dito tanto, é preciso enfatizar que a música de Tom Waits é belíssima. Sua voz rouca consegue, mesmo quando ele a emite de forma absolutamente gutural, ser melodiosa. Tom Waits denuncia o absurdo do homem. Mas não abre mão da beleza que esse mesmo homem é capaz, apesar de tudo, de produzir.

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