Culto à tradição rejuvenesce o samba paulista

Jovens da periferia fundam grêmio para incentivar o gosto pelo gênero

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Por Agencia Estado
Atualização:

Tarde de domingo na zona leste de São Paulo. Fim de abril. No pobre bairro de São Mateus, entre as ruas Morro das Pedras e Rodolfo Pirani, cerca de 300 pessoas da região estão reunidas em volta de 20 garotos, que desfilam em seus instrumentos um belo repertório da velha-guarda do samba, repleto de Cartola, Candeias e Nelson Cavaquinho, além de composições próprias, inspiradas no estilo dos mestres. É a festa de lançamento do Grêmio Recreativo de Tradição e Pesquisa Morro das Pedras, que se apresentará de novo no domingo, às 14 horas (na entrada será cobrado um agasalho ou um quilo de alimento em benefício das associações da comunidade). O Grêmio é formado basicamente por jovens da periferia que se reúnem para cultuar o samba e incentivar os garotos da região a conhecer e respeitar a cultura do Brasil. No muro central da agremiação, o símbolo de luta desses meninos, pintado por um morador da região, explica um pouco de suas idéias. Três rostos estampados entre nuvens observam um morro com seus primeiros barracos, lembrando a formação das favelas, berço das escolas de samba. Cartola é o sambista que representa um dos pontos mais altos da música brasileira. Ao lado, Paulo da Portela, figura central para a legitimação e prestígio que o samba acabou por conquistar. E Candeias, símbolo da luta pela preservação dos ideais das agremiações carnavalescas, em um tempo em que elas esqueceram seus valores de origem e perderam muito de sua ligação com as comunidades. No outro muro, o lema: "Amor e Respeito à Velha-Guarda." A alegria da festa em uma das regiões mais pobres de São Paulo faz lembrar uma antiga canção de Cartola: "Habitada por gente simples e tão pobre/ que só tem o sol que a todos cobre/ como podes Mangueira cantar." Um dos porta-vozes do Morro das Pedras explica que a formação dessa agremiação tem muita ligação com a decadência das escolas de samba, que "deixaram de valorizar seus músicos para prestigiar pessoas da elite, que não tinham nenhuma ligação com essa cultura e com sua população marginalizada e transformaram uma festa popular em um espetáculo mercadológico". Lembra que a primeira grande reação a essa mudança das escolas partiu de Candeias, figura central da Portela, que, no fim da década de 70, deixou a agremiação e se juntou a outros grandes sambistas do Rio para fundar a "Quilombo", que se tornou um símbolo de resistência. O lado social do projeto é sempre ressaltado por seus integrantes. Fazer samba para eles é mais do que compor canções. É ter consciência dos problemas da comunidade, da desigualdade social, do descaso que a cultura popular sofre pela maioria dos meios de comunicação. A palavra movimento é sempre ressaltada. Por isso, pedem para a reportagem não os identificar, para ressaltar o caráter coletivo da agremiação e impedir que a vaidade penetre nesse novo espaço. Raízes - Quando comparados ao rap, explicam que a diferença está em que eles não pretendem se inserir no mercado, mas sim negá-lo. Ressaltam que não se apropriaram de uma cultura estrangeira, mas ao contrário, mergulharam em suas raízes. "A idéia é, a partir de nossa cultura, trazer uma formação para as crianças da comunidade, apresentando para elas as músicas de nossos mestres, que as escolas de samba já não conhecem mais, e fazer nesse espaço uma série de atividades que as formem para que possam escapar da marginalidade." Há algum tempo, eles se reúnem para fazer shows em benefício das associações filantrópicas da região. Construíram o projeto com calma, seguindo Paulo da Portela, que cantou: "Um homem perde a cabeça sem saber bem o que faz." E, ansiosos, aguardaram por meses o lançamento da agremiação. Quando chega finalmente o grande dia, a festa de inauguração entra noite adentro. Membros do Samba da Vela, reduto da nova geração de sambistas da zona sul de São Paulo, juntam-se à roda para prestar sua homenagem com um belo samba dos irmãos Magno e Maurílio (do Quinteto em Branco e Preto), feito para a ocasião: "Viemos de Santo Amaro e vamos saudar/ a comunidade de São Mateus/ que é a principal da zona leste no samba/ e desejamos a todos saúde com a graça de Deus." A roda é reanimada pelo caldinho de mocotó do "Tim Maia", famoso dono de bar da região. Ele tem como clientes habitantes ilustres da área, como os irmãos Everson, Ivison e Vitor Hugo (que também fazem parte do Quinteto). Ivison conta que, quando criança, não havia luz em sua casa e foi com o rádio do carro do Tim, um Monza verde, que ele e os irmãos tiraram seus primeiros sambas. Muitos discursos são feitos em nome da agremiação, do samba e da comunidade. Mas, apesar de inflamados e apaixonados, são discursos curtos, pois no mundo do samba, como dizia mestre Candeias, "mudo é quem só se comunica com palavras".

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