Crítica: Liniker só nos deixa uma saída: implodirmos todos os gêneros

Álbum 'Remonta' cria uma 'sonoridade de LP' e derruba as fronteiras de um dos últimos gêneros machistas da música brasileira

PUBLICIDADE

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Liniker é uma desafiadora libertação. Vê-lo e ouvi-lo é uma experiência que nos obriga a derrubar as barreiras que erguemos mesmo quando lutamos pela igualdade de gêneros. Sua imagem indefinível elimina a existência do próprio gênero, dando um nó nas convicções com uma força capaz de seduzir os dois sexos sem levantar bandeiras nem se apropriar do discurso panfletário. Vê-lo e ouvi-lo ou vê-la e ouvi-la? Liniker não tem sexo. É a voz grave que sai da boca de batom, o desejo da mulher de falo, as angústias do homem de saias. É um novo passo no caminho que Ney Matogrosso abriu sozinho, em plena ditadura dos anos 1970, quando potencializou os poderes do macho e da fêmea em uma mesma criatura.

Liniker e Os Caramelows: soul cheio de groove e pegada setentista Foto: Alex Silva/Estadão

PUBLICIDADE

Agora, tudo isso teria apenas um efeito plástico se sua música não desse conta do recado. Na era das libertações, artistas andam mais preocupados com a imagem no espelho, como se ela justificasse qualquer música que quisessem criar. A forma musical de Liniker também quebra um padrão estabelecido em algum lugar do fim dos anos 1970. Fazer música de temática homoafetiva no mundo monotemático dos héteros, desde a época, pressupunha fazer música de embalagem eletrônica. Era como dizer que os gays só tinham o eletropop para se expressar. Se eles existiam no rock, no rap, no jazz, no samba, no erudito ou na música caipira, só saberia quem frequentasse seus lençóis.

Depois de Rico Dalassam entortar a dureza do rap com seu visual andrógino – Rico é um personagem forte que ainda precisa se justificar musicalmente –, Liniker vai a outro gênero machista, o soul brasileiro, que já teve Tim Maia pregando com Sandra de Sá a frase “vale tudo, só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher”. Sua instrumentação sai dos anos 1970 e encontra o discurso contemporâneo das ruas. É tudo arranjado nas formações secas de guitarra, baixo e bateria. Às vezes percussão, às vezes teclado, mas tudo com a charmosa imprecisão de um som saindo de um vinil. Além do gravão da voz em que Liniker acredita, sua música tem pausas de força. “Nossa, como a gente encaixa gostoso aqui”, irrompe do silêncio de Caeu. Com mais groove de James Brown, Prendedor de Varal mostra seu outro lado, o baile. E mais Zero, Você Fez Merda, Louise Du Brésil e Funzy mostram que o barulho que começou a ser feito quando Liniker lançou o EP não era em vão. Mais do que algo a dizer, ele e ela têm algo a cantar. 

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.