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Conheça Plinio Fernandes, jovem violonista brasileiro que chegou à Royal Academy of Music

Saído de Itanhaém, na Baixada Santista, ele percorreu um longo caminho até chegar ao famoso conservatório inglês

Por Júlia Corrêa
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Um dos mais prestigiados programas da rede britânica BBC One, o 'Imagine...', contou com a aparição de um brasileiro no mês passado. Saído da cidade de Itanhaém, na Baixada Santista, o jovem violonista Plinio Fernandes, de 26 anos, vem colhendo os frutos de uma ousada aposta feita entre 2012 e 2013: estudar música erudita em uma das mais renomadas instituições de ensino da área, a Royal Academy of Music, em Londres.

Plinio durante concerto na cidade inglesa de Exeter. Foto: Mark Hayes

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Nos últimos meses, para não passar a quarentena sozinho, Plinio se juntou a uma família de sete irmãos músicos que se isolaram na casa dos pais, em Nottingham, a 200 km da capital. “Toda semana fazíamos lives no Facebook, com mais de um milhão de pessoas assistindo", lembra ele. A atmosfera de diversão e dedicação às artes marcou os dias de confinamento do grupo, e despertou a curiosidade da emissora.

Comandado pelo jornalista Alan Yentob, o programa, que vai ao ar em horário nobre, registrou a rotina dos jovens músicos, em crescente sucesso no país. Ao ser entrevistado, Plinio foi indagado sobre como havia parado entre eles, e não escapou de uma pergunta sobre o Brasil, cuja situação tem chamado atenção da imprensa internacional.

Apesar do longo lockdown inglês, de provas postergadas no famoso conservatório e do temor pela família no Brasil, a verdade é que graças a seu talento, a uma amizade muito especial e a um pouco de sorte, o momento tem sido bastante produtivo para Plinio. O êxito, no entanto, envolve uma trajetória que vem sendo construída com muito empenho há quase duas décadas.

Meus pais me incentivaram muito desde a primeira nota que eu toquei

A música sempre esteve presente em sua vida. O bisavô foi o compositor do hino de São Bernardo do Campo, e o pai, um entusiasta do violão, o grande exemplo para que seguisse tal caminho. "Lembro de vê-lo tocar, mas o violão era muito grande para mim. Quando dei uma espichada, aos sete anos, eu tentei segurar e finalmente encaixou", recorda Plinio, em entrevista dada por telefone ao Estadão.

Mestres. A partir daquele momento, ele passou a ter aulas de violão erudito com Eduardo Martinelli, atual maestro da Orquestra Sinfônica de Campo Grande. Já com oito anos de idade, não só participou como também foi o vencedor do tradicional concurso Musicalis, na categoria dedicada à sua faixa etária. "Foi uma motivação para continuar", relembra ele. "Meus pais me incentivaram muito desde a primeira nota que eu toquei", acrescenta Plinio, ressaltando a parceria deles ao acompanhá-lo nos outros concursos e festivais que passou a frequentar sob incentivo do professor.

Com incentivo dos pais e de mestres como Eduardo Martinelli, Plinio frequentou concursos e festivais na infância. Foto: Acervo pessoal

Entre um e outro evento, Plinio teve a oportunidade de conhecer os principais violonistas do País, que eram jurados nas disputas. "Conheci nomes como o Henrique Pinto, com quem tive um contato muito inspirador. Em casa, eu e meu pai sempre ouvíamos o CD do Fábio Zanon tocando a integral para violão de Villa-Lobos; quando eu o conheci, fiquei emocionado. Era incrível estar no meio de tanta gente experiente".

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Desde aquele momento, a questão da representatividade já era importante para Plinio. "Pelo fato de eu ser negro e não ter muitos violonistas negros nesse meio, eu sentia uma necessidade de referência, que encontrei de forma muito especial em duas pessoas: o João Luiz Rezende, do Brasil Guitar Duo, e o Franciel Monteiro, que participava dos concursos em categorias mais avançadas".

Nesse meio tempo, Martinelli precisou se mudar para Campo Grande. Se isso fez Plinio ficar algum tempo sem um professor, contando apenas com a orientação de amigos mais velhos, possibilitou também que ele se aventurasse no que seria a primeira viagem de sua carreira, quando o antigo mestre lhe convidou para "solar" com a Orquestra Barroca de Mato Grosso do Sul, que ele acabara de fundar. "Eu tinha 12 anos, toquei em três ou quatro concertos e dei entrevistas para televisões de lá. Foi um momento decisivo, pois indicava que as coisas estavam indo bem para mim".

Plinio ao lado do pedagogo Henrique Pinto, referência no violão erudito, morto em 2010. Foto: Acervo pessoal

A fama de menino prodígio lhe proporcionou uma bolsa integral em uma escola particular de sua cidade. O apreço pela música erudita, incomum entre seus colegas, despertava a curiosidade deles pelo "malabarismo" que era capaz de fazer com os dedos. Vale destacar, no entanto, que a dedicação à música jamais impediu que Plinio levasse uma vida como a de qualquer outro jovem de sua idade. "Eu era louco por futebol. Na época, queria que os dias tivessem 50 horas para poder conciliar tudo aquilo", relembra ele aos risos.

Em casa com os meus pais, eu sempre ouvia Milton Nascimento, Djavan e Gilberto Gil

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Referências. Aliás, se suas principais inspirações iam de Bach a Heitor Villa-Lobos, não ignorava outros ritmos. "Ainda hoje, sei de trás para a frente todas as músicas dos Racionais", revela Plinio, explicando que a versatilidade do violão lhe permite transitar tanto pelo samba, a MPB e o jazz quanto pela música erudita. "Em casa com os meus pais, eu sempre ouvia Milton Nascimento, Djavan e Gilberto Gil. Isso me formou como indivíduo. Nos seis anos que estou na Inglaterra, só voltei uma vez ao Brasil, então me apego a essas memórias afetivas que a música remete". 

Depois de um ano estudando violão sem o auxílio de um professor, Plinio percebeu que era a hora de preencher a lacuna deixada pela mudança de Martinelli. "O Henrique Pinto era uma grande referência, eu achava que não seria acessível, mas decidimos arriscar". O pai ligou para o pedagogo, e ele não só aceitou dar aulas quinzenais ao garoto como também "não cobrou um centavo". "Por três anos, até os meus 16, eu pegava o ônibus, subia a serra (para São Paulo), fazia aula e voltava. Esse período foi de inspiração tremenda, pois o Henrique instigava em todos os alunos a paixão pela música". Para a desolação de Plinio, no entanto, as lições tiveram de ser interrompidas — o mestre não resistiu às complicações de um enfarte.

Plinio e Fábio Zanon, mestre que incentivou os estudos fora do País. Foto: Acervo pessoal

"Fiquei mais de um ano sem professor, digerindo a questão do luto. Enquanto isso, tentava participar de concertos e outros concursos juvenis", recorda. A situação mudaria após ele receber uma ligação de Linda, viúva de Henrique. Ela havia sonhado com Plinio e ligou para saber como ele estava. Ao descobrir que não havia encontrado outro professor, decidiu fazer uma ponte com outra referência para ele, o consagrado violonista Fábio Zanon.

"Foi excepcional ter aulas na casa do meu ídolo. Eu estava com 17 anos, era época de se pensar em vestibular. Desabafei com ele que eu queria esperar, poder dedicar um ano inteiro só ao violão e decidir, então, o que fazer". Nesse período, além das lições de Fábio, Plinio passou a ouvir conselhos de amigos sobre a possibilidade de estudar fora do País. 

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Sonhando alto. "Fui falar com o Fábio para ver se a ideia era muito lunática. Ele disse: 'pelo que você toca, é possível, sim; vamos nos preparar e estudar inglês direito'". Estava plantada, a partir dali, a semente para Plinio sonhar com a vaga na Royal Academy — instituição sugerida pelo próprio mestre por ter sido o lugar onde ele e outros importantes violonistas estudaram no passado e da qual ele também é professor convidado.

Plinio passou meses buscando conciliar os estudos com eventos importantes, como um recital no Masp. Era novembro de 2012 quando chegou a hora da seleção, feita por vídeo: "mandei um DVD tocando o repertório exigido, mas ainda tinha uma entrevista em que eu precisava falar por que a Royal Academy era um lugar para mim. Fiz isso de uma forma capenga, com a câmera no meu rosto, lendo um papel ao lado com um inglês meio fajuto, mas mandei tudo cruzando os dedos". Os dois meses seguintes seriam de muita expectativa: diariamente, conferia se havia alguma correspondência para ele. No fim de janeiro, a confirmação da aprovação veio acompanhada de um empecilho: a anuidade ficava em torno de 18 mil libras (hoje, R$ 127 mil), um valor com o qual, somado ao custo de vida londrino, a família não teria como arcar. 

Bach e Heitor Villa-Lobos estão entre as referências de Plinio. Na foto, violonista visita o Regent's Park, em Londres. Foto: Ben Finlay

Sem saber como resolver a questão, ele continuou os estudos de inglês. Mas, numa cidade pequena como Itanhaém, a notícia se espalhou rápido e a sua aprovação acabou virando tema de reportagens. A repercussão acabou ajudando Plinio, contemplado, para sua surpresa, com uma bolsa integral da Capes. "Um dia eu estava voltando da aula de inglês e recebi uma ligação, pedindo para eu enviar uma carta explicando todos os custos e a logística; ficaram sensibilizados e, segundo eles, eu representaria o Brasil".

Os planos de representar o País lá fora, no entanto, tiveram de ser adiados, pois houve um atraso nos trâmites da fundação com a Royal Academy. Se Plinio precisou esperar mais um ano para concretizar o sonho, aproveitou esse período para melhorar o seu inglês. "Eu estudava todos os dias, até deixei o violão um pouco de lado. Fiz uma imersão absoluta. A fatalidade foi ruim a princípio, mas acabou ajudando".

Olhei para o prédio da Royal Academy e disse: 'aconteceu: estou na melhor escola do planeta.'

Adaptação. Não faltou emoção na chegada em Londres, e esse entusiasmo persiste ainda hoje, quando Plinio cursa seu mestrado na instituição. "Olhei para o prédio da Royal Academy e disse: 'aconteceu: estou na melhor escola do planeta. Todos os meus ídolos ou deram aula ou estudaram aqui'. Eu estava super impressionado. Em duas semanas, já vi boa parte das pessoas que eu só via pelo YouTube", rememora, sem deixar de destacar o choque cultural sentido de início: "por causa de um atraso do visto, cheguei duassemanas depois do período de integração. Eu entendia o inglês, mas faltava confiança para falar. Depois, acabei me enturmando com colegas latinos e foi rolando aos poucos". 

Como ele conta, "foi uma avalanche de coisas novas para serem aprendidas". Entre as lições inesquecíveis, estão as com Michael Lewin, que havia sido professor de Fábio Zanon. A rotina intensa de aulas e palestras era equilibrada com momentos de lazer até então distantes de seu universo: "assisti muitos concertos com os principais maestros do planeta; era incrível pagar apenas quatro libras para ver a Filarmônica de Londres".

A vitória dele foi importante para mim por mostrar como a questão racial não era decisiva na música erudita

Encontro especial. O momento que Plinio considera decisivo nesse percurso viria no fim de sua graduação: foi o encontro com o amigo Sheku Kanneh-Mason, jovem celista que, na época, ganhou grande projeção internacional ao tocar no casamento do príncipe Harry e Meghan Markle, depois de já ter vencido um importante prêmio britânico, o Young Musician, da BBC. "A vitória dele foi importante para mim por mostrar como a questão racial não era decisiva na música erudita", avalia Plinio, que hoje divide a moradia com Sheku e Braimah, outro dos sete irmãos da família Kanneh-Mason — aquela com a qual passou a quarentena. 

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Plinio toca ao lado do amigo violoncelistaSheku Kanneh-Mason. Foto: Acervo pessoal

"Uma das irmãs dele era do meu ano na graduação. Quando ele chegou, no meu último ano de bacharelado, nós ficamos muito amigos. Teve uma questão de identidade racial. Passamos a jogar futebol. Um dia tocamos Piazzolla e percebemos que teria muita coisa para fazermos juntos. A amizade foi crescendo e essa conexão se reflete na música".

Com a graduação concluída, Plinio precisaria voltar para o Brasil. Ao receber a bolsa da Capes, havia concordado que permaneceria no País pelo mesmo tempo passado fora. Mas ele sentia que ainda havia muito o que por fazer por lá. "Entramos num acordo para eu ficar mais um tempo aqui, onde eu teria mais a fazer pelo Brasil". Após uma concorrida seleção, ele foi aprovado para o mestrado na Royal Academy, mas, novamente, surgiu a questão das despesas.

Uma pessoa cujo nome ele prefere manter em segredo bancou todos os custos, dizendo-lhe para ir atrás de outras formas de ajuda no ano seguinte. Plinio chegou a criar uma campanha de crowdfunding e divulgá-la no Brasil, mas percebeu, entre outros empecilhos, que o câmbio não era favorável. Nesse meio tempo, deu a sorte de conseguir compartilhar a sua história com "alguém influente" do meio das artes da Inglaterra, que mobilizaria outras pessoas para ajudar o violonista a concluir seu mestrado.

Parceria. Segundo Plinio, a Royal Academy estimula que, nessa etapa, os alunos tenham uma postura mais proativa. Com uma estrutura que prioriza a prática dos instrumentos, os músicos devem fazer o possível para se promover e ir em busca de uma carreira internacional. A parceria com Sheku ajudou Plinio nesse sentido: "entre o primeiro e o segundo ano, ele me convidou para gravar com ele um arranjo de Scarborough Fair para o seu novo CD pela Decca (gravadora inglesa). O disco foi lançado este ano e entrou no ‘top 10 geral’ da Inglaterra. Foi a primeira vez em 35 anos que isso aconteceu com um disco de música erudita, e a faixa que gravamos é a mais popular do CD". 

Na quarentena, Plinio (de azul) se juntou aos sete irmãos Kanneh-Mason, na cidade de Nottingham. Foto: Kadiatu Kanneh

Para o lançamento, os dois participaram de vários programas de rádio ingleses e chegaram a ir a Paris para tocar ao vivo em uma emissora de artes, com cerca de dois milhões de espectadores. "As pessoas chegavam a nos parar na rua, foi uma projeção grande". Agora, Plinio e Sheku estão com a “missão autoimposta” de suprir a “lacuna de repertório” para a combinação entre violão e violoncelo, o que envolve a encomenda de novas composições. Uma delas deve vir de um nome admirado pela dupla — o cubano Leo Brouwer.

Isso tudo só aconteceria no melhor dos meus sonhos

A prova final do mestrado de Plinio seria em maio, mas precisou ser adiada por causa da pandemia. Será em setembro, e ele já está com o repertório pronto, o qual inclui obras de compositores como Manuel de Falla. "Dois ou três dias antes, eu devo ficar mais ansioso, mas estou com tempo para me preparar. Só vai ser estranho pois vou tocar apenas para uma banca de três pessoas, sem a plateia que era prevista".

Parte desse preparo já se deu de um modo bem especial, nos dias que passou com a família Kanneh-Mason. As lives feitas nesse período, nas quais Plinio buscou incluir composições brasileiras, mostraram também para ele a importância das redes sociais. "Eu não tinha quase nenhuma presença nas redes, e vi como isso é crucial. Muitas pessoas passaram a me seguir para acompanhar meu trabalho, e quero fazer jus a elas".

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Esse é mais um aprendizado a entrar para a trajetória de Plinio, que, ao que tudo indica, está trilhando o caminho certo. "Isso tudo só aconteceria no melhor dos meus sonhos. Ainda bem que as circunstâncias e as pessoas que eu venho encontrando estão me levando para algo muito bacana". Talvez por humildade, ele só deixou de citar o principal: o seu próprio talento.

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