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Com elementos eletrônicos, Aláfia propõe homenagem aos bairros da capital paulista em novo disco

Cada canção se estabelece como um espelho de determinada região da cidade

Por Pedro Antunes
Atualização:

Na radiola, Marvin Gaye. Uma edição de luxo de Let's Get It On, álbum clássico de 1973, rodava no aparelho antigo e reverberava as paredes da sala espremida. Irônico, Gaye solta a voz nas caixas de som cantando a política You're the Man, faixa negada pela gravadora Motown, mesmo após o sucesso do músico no disco What’s Going On, do ano anterior, pelo tom da canção. 

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O caráter politizado do artista caiu muito bem naquela manhã cinza de 2 de fevereiro, quando políticos da atualidade se autointitulam “os caras”. Cai muito bem no que três dos 12 integrantes do Aláfia presentes naquele cômodo querem dizer em seu novo álbum SP Não É Sopa - Na Beirada Esquenta, que será lançado em formato físico e digital nesta sexta-feira, 10  Eduardo Brechó (voz e guitarra), dono da casa e do disco, Filipe Gomes (bateria e produção) e Jairo Pereira (voz) balançam ao som de Gaye. A referência musical do norte-americano pode não estar escancarada no novo disco da big band paulistana, mas a tensão está lá, transportada para o ambiente paulistano, caótico. Assim como está a referência a George Clinton, o arquiteto do funk psicodélico dos anos 1970, e ao recorrente candomblé, escancarado no trabalho anterior, Corpura, de 2015.

SP Não é Sopa é o terceiro disco da trupe de 12 músicos formada pelos já citados Brechó, Jairo e Filipe, Xênia França (voz), Jairo (voz), Alysson Bruno (percussão), Pedro Bandera (percussão), Lucas Cirillo (gaita), Pipo Pegoraro (guitarra), Gabriel Catanzaro (baixo), Gil Duarte (trombone e flauta), Vinicius Chagas (saxofone) e Fabio Leandro (teclado). A princípio, conta Brechó, “não se tratava de um disco do Aláfia”. “Era um projeto especial no qual chamaríamos amigos de São Paulo para falar sobre os bairros os quais eles se identificavam”, explica. “Esse conceito ficou até o final, mas acabamos puxando o disco para a gente. Se tornou um álbum novo, com algumas participações.”

Trio. Filipe Gomes, Eduardo Brechó e Jairo Pereira (da esq, para dir.), na Brasilândia Foto: Sergio Castro/Estadão

“O tema ainda é São Paulo”, explica Jairo. A pedido do Estado, Brechó explicou como cada canção se estabelece como um espelho de determinado bairro ou região da cidade cinza que, como eles dizem, “não é sopa” - veja no quadro ao lado. “As pessoas sempre relacionaram a nossa música como algo com a cara de São Paulo”, explica Brechó. Desta vez, a ideia foi deixar isso ainda mais claro. “As pessoas sempre tiveram dificuldade em identificar o nosso gênero”, diz. 

Corpura, na metáfora de Brechó, era um disco de “terra”. Traz as referências de candomblé no som jazzístico e funkeado da banda. O terceiro disco, como a arte da capa exibe, é “concreto”, como São Paulo. Buscaram, no trabalho, incluir as batidas eletrônicas e as sobreposições de camadas para dar o caos urbano da cidade. Por isso, o subtítulo do disco, Na Beirada Esquenta. “A questão central de São Paulo é a periferia”, diz Brechó. Como Gaye, a mensagem chega envelopada pela massa sonora dançante que Aláfia faz tão bem. “Ser preto em São Paulo é ser uma ameaça constante”, diz Jairo, que completa: “Discutimos questões sociopolíticas à nossa maneira”.SÃO PAULO NO DISCO1 - ‘São Paulo Não é Sopa’ “Se pensarmos o álbum como trilha sonora, esse seria o tema principal. Buscamos o clima das introduções de blaxploitation. Trata de violência policial, que, no nosso ponto de vista, é o fator mais representativo no que se refere à beirada quente da cidade.”2 - ‘Mano e Mona’ “Fala das madrugadas no centro e das diversas relações que ali se estabelecem. Convidamos Raquel e Assucena das Bahias e a Cozinha Mineira para cantar.”3 - ‘No Fluxo’ “Dedicada aos movimentos de música e dança, e à sua indústria. Viva a juventude periférica. Viva o Funk.”4 - ‘Gentrificação’  “Trata da especulação imobiliária e da ‘força da grana que ergue e destrói coisas belas’. A tendência do capital é expulsar muitas famílias fundadoras de alguns dos bairros centrais da cidade que estão se tornando cada vez mais elitizados. Bela Vista e Barra Funda são exemplos.”5 - ‘Agogô de 5 Bocas’ “Nasceu de uma história real. Meu irmão de santo, o percussionista e cantor Rudah Filipe, pediu-me para buscar um agogô de 5 bocas, cada pessoa me mandou para outro lugar. No final, ninguém me entregou nada. E o hábitat é a Brasilândia. Fiz esta letra com todo carinho.”6 - ‘Saracura’ “Fiz a letra quando morava na Bela Vista e estava muito próximo à Vai-Vai. A letra cita o Amado Maita e eu convidei a filha dele, Luísa, para compor comigo. Cantamos juntos esse ‘sambolero’."7 - ‘Liga Nas de Cem’ “Trata do abismo social de São Paulo. O ‘xis do problema’. Ao lado de ‘São Paulo Não É Sopa’, é uma música com temas gerais que falam da cidade como um todo. O verso: ‘se eu citar os guetos, não sobra nem o centro’ é emblemático e crucial.”8 - ‘Peripatéticos’ “É uma homenagem a quem frequenta a cidade, principalmente caminhando. É uma dica de como vieram a maioria das ideias que estão colocadas ali. Vieram nestes cruzamentos e cruzadas. Peripatéticos eram os seguidores de Aristóteles, que filosofavam caminhando.”9 - ‘Extremo Sul’ “Dedicada à periferia da zona sul de São Paulo - da Ponte João Dias até o final das represas. O convidado desta faixa foi Salloma Salomão, grande artista inspirador pra nós e que mora nos extremos da zona sul desde que chegou em SP há uns 30 anos. Axé.”

10 - ‘Teu Mar Arde Meus Olhos’ “A poesia recitada é natural na nossa expressão desde o começo do Aláfia, quando as reuniões de quartas-feiras eram um pretexto para acabarmos o dia na Cooperifa recitando nossos versos. A tradição da literatura periférica e esse movimento sempre esteve presente em tudo que propusemos. Neste disco, havia convidado Allan da Rosa para falar da sua região, mas este poema caía tão bem para encerrar o disco. Estamos falando desta São Paulo onde os táxis não vão.”11 - ‘O Primeiro Barulho’ “Uma ode ao rap nacional. Um dos nossos maiores educadores. Celebramos os momentos em que o culto aos orixás foi celebrado em sua lírica. Os convidados são os parceiros da Discopédia.” POR EDUARDO BRECHÓ