Com Caetano Veloso, Jorge Mautner revisita seus álbuns clássicos
Dupla faz três apresentações em São Paulo no Sesc Pinheiros
Entrevista com
Jorge Mautner
Entrevista com
Jorge Mautner
26 de junho de 2014 | 20h00
A canção Olhar Bestial foi feita para Maysa. "Não leve a mal / Mas seu olhar é bestial / Tem olhar de fera / Tem olhar de triste / Tem olhar de primavera / Tem olhar de quem só bebe uísque." Em 1972, havia pouca coisa mais moderna e mais desbundada do que Jorge Mautner - assim como em 2014. Mas, daquele lote inicial de suas canções, apenas algumas poucas cruzaram as décadas, como Maracatu Atômico (gravada por inúmeros, entre eles Gil e Chico Science) e Vampiro (gravada por Caetano).
Assim, quem estiver disposto a descobrir o refinamento da fase inicial do cantor, compositor, poeta, escritor, filósofo e violinista carioca Mautner tem uma chance de ouro entre sexta e domingo, no Sesc Pinheiros. Mautner estará fazendo o show que lança a caixa Três Tons (material que relança os três primeiros discos do músico: Para Iluminar a Cidade (de 1972), Jorge Mautner (de 1974) e Mil e Uma Noites de Bagdá (de 1976).
Mautner (voz e violino) terá o auxílio luxuoso de Caetano Veloso (com quem gravou o álbum Eu Não Peço Desculpa, em 2002) em boa parte do show.
Sua banda é formada por Bem Gil (voz e guitarra), Bruno Di Lullo (baixo e voz), Marcelo Cardoso (violão e voz) e Rafael Rocha (bateria e voz). E o repertório inclui Super Mulher, a belíssima Anjo Infernal ("Fiz para uma menina que não lembro mais o nome"), Quero Ser Locomotiva, Sapo Cururu, Samba dos Animais, O Relógio Quebrou, Tarado, Todo Errado, Herói das Estrelas, Homem Bomba e Maracatu Atômico.
Você fará um show no qual revisita o repertório de seus três primeiros discos. É um momento de revisão do passado?
Eu sempre volto ao passado. Em mim, passado, presente e futuro se confundem. Nesse momento, eu tenho retornado ao meu começo, ao ano de 1969, quando conheci Caetano e Gil. Fiz três shows com Gil no ano passado e meu convidado agora é Caetano. O grupo que me acompanha é a Banda Tono, que é o grupo do filho de Gil. Vivíamos no exílio, mas sempre nos encontrávamos. Às vezes, eu ia para Paris e os encontrava na casa de Violeta Arraes, que apoiava o pessoal exilado. Então é esse diálogo de gerações, encontro de passado, presente e futuro. O professor argentino Mário Cámara, da UFMG, me chamou de avô do tropicalismo. Eu comungo daquele ideário da suprema liberdade.
Ouvindo seus primeiros discos, apesar desse contexto, o que transparece é uma poética mais libertária, com pouco vínculo com a situação política do País naquele momento.
A visão mesmo era da importância do indivíduo. E nós sabíamos que havia a censura, que esperava alguma coisa. Por isso, é tão casto O Demiurgo. As músicas em geral são feitas de metáforas, lançando o interesse para a literatura, para a filosofia, para os direitos humanos. Ionesco dizia: "As ideologias nos separam, mas os sonhos e as angústias nos unem". Minha música sempre foi uma exaltação do Brasil, e a música afro sempre foi minha influência. Lembro uma vez que fui a um programa de TV em 1962 e estavam lá o Jorge Ben e o Simonal. O Jorge Ben falou para o Simonal: "Ei, o Jorge Mautner é música negra!". Sim, aos 7 anos eu fui criado por uma babá que era do candomblé, eu sou música negra.
O disco Para Iluminar a Cidade foi sua estreia mesmo em disco?
Eu lancei meu primeiro disco em 1965, um compacto que tinha de um lado a faixa Não Não Não e no outro a faixa Radioatividade. Era acompanhado pelo grupo folk The Vikings. Tinha publicado também o livro Vigarista Jorge. Por causa do disco e do livro, que foram apreendidos, eu fui exilado. O livro foi censurado e recolhido pelo Dops por causa do prefácio de Mário Schenberg. Fiquei 7 anos fora, nos Estados Unidos. Em 1969, fiz o filme O Demiurgo, que tinha Far Far Away e O Vampiro, que seria depois gravada por Caetano em Cinema Transcendental. No exílio, trabalhei na Unesco e, durante um simpósio em Caracas, eu conheci o poeta Robert Lowell e me tornei secretário literário dele. Mas o (pesquisador) Marcelo Fróes descobriu a gravação de um show que eu fiz muito antes de Pra Iluminar a Cidade em que muitas das músicas que eu gravei já estavam presentes. Eu mesmo não sabia da existência dele. Era uma reunião de artistas que queriam restabelecer a democracia no País, e as faixas são imensas, algumas têm mais de 10 minutos. Esse foi o "disco zero". Vai ser relançado com o nome de Para Detonar a Cidade. Também estou trabalhando num novo disco, de inéditas, que deve começar a ser gravado em julho. É um álbum que quero fazer para lembrar Nelson Jacobina, que foi meu parceiro a vida toda e estará sempre presente. Com ele, eu fui a lugares que ninguém ia e tocamos até a sua morte. Ele tocava mesmo após 4 anos de metástase, nem a pílula de R$ 40 mil amenizava a dor dele. Ele só não sentia a dor quando subia no palco para tocar. O álbum possivelmente vai se chamar Nelson Jacobina, Jesus de Nazaré e os Tambores Para Sempre. Caetano também deve participar. E um grupo novo chamado Exército dos Bebês.
O show de sábado será logo após o jogo do Brasil. Você está vendo a Copa do Mundo?
Meu entusiasmo com a Copa é total. Estou fascinado pela lição humanista, democrática que ela deixa. Assisto a todos os jogos. O Brasil é o único povo que tem esse amálgama, como disse José Bonifácio. Os outros se esforçam. A mordida de Suárez foi terrível, mas faz parte do jogo. Talvez ele tenha sido influenciado pela antropofagia brasileira, quem sabe (risos). O futebol representa a pacificação dos espíritos. O escritor Conan Doyle, de Sherlock Holmes, fez parte da Segurança Nacional britânica. O futebol foi maquinado na terra da rainha para sublimar revoluções sangrentas ou insurreições. Doyle dizia aos jogadores que eles deviam jogar como guerreiros porque o esporte estava representando o império britânico. Aí veio Garrincha e desmontou tudo. O corpo do homem vira o centro. O futebol brasileiro é a capoeira, é a inovação absoluta, é a exuberância da democracia. O povo, ou absorve esse amálgama ou vira nazista. É como dizia o Marechal Rondon, que era índio: "Matar jamais, morrer se for preciso". Outro dia eu estive com o (sociólogo) italiano Domenico de Masi, que estava lançando O Futuro Chegou. Ele diz que o Brasil é a civilização mais preparada para o século 21. Tudo isso converge: essas são as ideias do tropicalismo.
JORGE MAUTNER
Sesc Pinheiros. Teatro Paulo Autran. Rua Paes Leme, 195, tel. 3095-9400. 6ª e sáb., às 21 h; dom., às 18 h. R$ 10/ R$ 50.
Os clássicos de Mautner:
Anjo Infernal
Olhar Bestial
Vampiro
Samba dos Animais
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