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Clemente, do Inocentes, e Marcelo Rubens Paiva lançam livro sobre o punk

Em SP, movimento teve início nas regiões mais pobres e afastadas da capital paulista

Por João Paulo Carvalho
Atualização:

A cadeira de rodas de Marcelo Rubens Paiva, de 57 anos, balançava de um lado para o outro num ritmo, até então, frenético, pulsante e intenso. Pela primeira vez em mais de dois anos, o “cadeirante doidão”, como ficou conhecido pelos colegas que frequentavam os shows de punk-rock na capital paulista, na década de 1980, tinha voltado a sorrir sem restrições. Sentia-se feliz. No salão beta da PUC-SP, em 1982, acordes rápidos, letras duras e gritos ensurdecedores de um hino daquela geração perdida: Pânico em SP, pânico em SP, pa-ni-cô em esse pê

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Clemente Nascimento, de 53 anos, guitarrista da banda Inocentes, pioneira do punk-rock paulistano, conduzia a massa. Marcelo flutuava. Saía do chão, ainda que aquilo, cientificamente, não fosse possível. Ele havia deixado o hospital há alguns meses. Acostumava-se, dia após dia, com a ideia de que passaria a vida inteira em uma cadeira de rodas. Ficou tetraplégico aos 20 anos, no auge, depois de mergulhar em um lago, bater a cabeça em uma pedra e quebrar a quinta vértebra cervical. “Eu me sentia bem no meio de todos aqueles punks. De alguma forma, eles me acolheram, me recrutaram. Cuidaram de mim. Voltei a me sentir vivo depois de muito tempo”, afirma o jornalista, dramaturgo, colunista do Estado e autor de Meninos em Fúria (Alfaguara), que acaba de chegar às livrarias de todo o País. 

O livro relata, sob a percepção de Clemente, dos Inocentes, como o movimento punk explodiu em São Paulo, tendo a história de Marcelo Rubens Paiva correlacionando os fatos. “Encontrei o Clemente na Avenida Paulista em um dia corriqueiro da semana. Ele disse que tinha algumas coisas escritas justamente sobre este tema. Eu me ofereci para escrever um livro. Depois pensei melhor e achei que seria legal me incluir na própria história, pois vivenciei vários momentos ao lado deste cara (Clemente). Vi tudo aquilo acontecendo. É uma coisa meio Emmanuel Carrère (escritor francês). Li muitas biografias. Não queria fazer uma só do Clemente, embora ele seja o tema principal do livro. Os Inocentes são fenômenos culturais, o punk também, claro”, conclui ele.

Rock. Clemente (E) e Marcelo viram a ascensão do gênero em SP Foto: Daniel Teixeira/Estadão

No fim da década de 1970 e começo dos anos 1980, o Brasil ainda vivia sob o regime ditatorial. Se o mundo observava atento o aparecimento de bandas como Ramones, Sex Pistols, MC5, Stooges, New York Dolls e The Clash, a produção nacional, principalmente o rock, ficava cada vez mais nebulosa e sem graça. O que se via e ouvia era conflitante com a situação política do País, que enfrentava censura, violência e repressão policial.

Somado a isso, as periferias, principalmente as de grandes cidades como São Paulo, nos extremos, não eram ouvidas. Os jovens pobres ficavam cada vez mais à margem da sociedade e do pensamento cultural. Faltava sangue. O Brasil estava carente de um pulso musical vibrante, que pudesse dar voz aos excluídos. “Quando o movimento punk surgiu no País, no início da década de 1980, as bandas passaram a fazer um som mais pesado. Isso foi reflexo do momento político que vivíamos. Até então, a grande influência do rock era a Blitz, de Evandro Mesquita. Eles transformavam crônicas cariocas em grandes hits. No entanto, muita coisa acontecia naquela época: greve no ABC e a luta contra a ditadura militar, por exemplo. O Clemente e Os Inocentes são símbolos disso. Eles deram a largada para a mudança”, afirma Marcelo Rubens Paiva.

Pobre e negro, Clemente Tadeu Nascimento, morador do bairro do Limão, na zona norte de São Paulo, filho do vendedor Clementino Lopes Nascimento e xodó de dona Alice, trabalhava como office-boy. Comprou seu primeiro baixo aos 16 anos, ainda com a ajuda da mãe. Ao lado das irmãs, abriu um crediário e adquiriu um amplificador. Foi um grande evento para toda a família, quando a sua banda, o Restos de Nada, foi se apresentar em um lugar bem afastado. Pouco tempo depois, ele deixou o grupo e passou a integrar os Condutores de Cadáver, que se tornaria, enfim, a espinha dorsal dos Inocentes. “Eram muitas bandas. Restos de Nada, AI-5, Condutores de Cadáver, Cólera. A gente não tinha ideia do que estava sendo formado ali. Demorou um tempo para termos essa percepção”, afirma ainda Clemente.

Inocentes. Show da banda em 1986, no Sesc Pompeia, em SP Foto: Rui Mendes/Divulgação

Em 1981, os punks já lotavam shows nos subúrbios da capital paulista. Muitos festivais eram realizados por lá. Além das bandas já citadas, grupos como Ratos de Porão e Lixomania também se apresentavam nas zonas norte, leste e sul de São Paulo. No ABC, crescia o movimento operário. O punk-rock se fortalecia e, finalmente, chegava à grande metrópole.

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As gangues punks eram heterogêneas e de várias regiões da cidade. Embora tivessem o mesmo propósito, elas se enfrentavam duramente. O filme Warriors (1979), que fala sobre a briga entre as gangues de Nova York Gramercy, Rogues e Warriors, era uma forte inspiração para os jovens. Os punks do ABC, por exemplo, rivalizavam com os grupos da zona norte e da zona leste. “Até o estereótipo era diferente. A gente conseguia identificar se o cara era do ABC ou da capital paulista”, lembra também Clemente.

Não existia paz entre as gangues. Pisar no território inimigo podia significar a morte. Aos 17 anos, Clemente se apaixonou por Elenice, uma garota mais velha. Ele fazia parte da gangue da Carolina. Mas ela, entretanto, moradora da Vila dos Remédios, era da gangue Punk do Terror. Obviamente, não deu certo.

Passar a noite na cadeia era algo normal para aqueles jovens. Clemente, por sinal, ficou várias noites na prisão. “A gente brigava muito. Quase toda noite. O livro traz inúmeros relatos. Depois de um tempo, a coisa toda parou de fazer sentido. Começou a ficar mais violenta. Afinal, se tínhamos o mesmo propósito, por que brigávamos? Não estávamos chegando a lugar nenhum, a coisa não evoluía, não saía do lugar, acrescenta Clemente.Festival em SP foi o divisor de águas O festival O Começo do Fim do Mundo, realizado em 1982 no recém-inaugurado Sesc Pompeia, com a presença de 20 bandas de punk-rock de São Paulo e do ABC, foi um marco do movimento no País. A ideia partiu do escritor e dramaturgo Antônio Bivar, importante agitador da contracultura brasileira, que percebeu a força do movimento entre os jovens de origem proletária na região metropolitana de São Paulo. 

Ainda sob o regime militar, em tempos de crise econômica e desesperança no futuro, os jovens punks flertavam com a anarquia e questionavam o sistema. Por esse motivo, a própria aceitação do Sesc foi vista com desconfiança por algumas bandas, acostumadas a tocar em “buracos” e festas sem nenhuma estrutura.

Clemente. (2º, à esq.) entre os punks Krânio e Tiozinho Foto: Rui Mendes/Divulgação

Mas o novo espaço projetado por Lina Bo Bardi de fato se mostrava aberto a novas propostas e surgia ali uma oportunidade para o punk externar sua cara para um público mais amplo. Também foi uma tentativa de acabar com os confrontos entre as gangues do ABC e de São Paulo.MENINOS EM FÚRIA: O COMEÇO DO FIMAutor: Marcelo Rubens Paiva e Clemente NascimentoEditora: Alfaguara (248 págs.,R$ 39,90)TRECHO "Com raiva do mundo, com raiva do futuro, Pânico em SP se transformou no meu mantra. Cercado por aqueles punks, eu me sentia bem, muito bem, tão bem. Minhas mãos ganhavam os primeiros calos, meus cotovelos também, calos do contato com as rodas de borracha, que eu tinha que tocar. Isso é bom. Morava de novo com mamãe. Isso não era bom. Sem um puto no bolso. Isso não era nada bom. Mudava tudo. Curiosamente, a banda e os punks me trataram como um xodó: o cadeirante doidão. Eu sentia que, durante o refrão, a cadeira saía uns centímetros do chão: eu levitava. Desafia-se a gravidade. Nada de magias ou forças transcendentais. Eu flutuava para a direita e a esquerda. Punks grudavam em mim, uns de um lado da cadeira, outros do outro."

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