Clapton celebra sua história em show de São Paulo

Ele canta, nesta última turnê mundial, o "pai" (My Father?s Eye), o filho que morreu tragicamente (Tears in Heaven) e a mulher amada em diversos momentos

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Por Agencia Estado
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O som era limpo, mas um pouco fraco para o tamanho do lugar. A voz era bem-colocada, mas faltava-lhe algum entusiasmo. O homem parecia cansado, talvez até um tanto melancólico após uma estrada tão longa. Afinal, foi cerca de uma centena de shows da turnê Reptile até esse de São Paulo, ontem à noite. Uma volta ao mundo completa, dezenas de hotéis, aviões, gracias, merci, arigatô, obrigado. Ainda assim, durante três ou quatro momentos, foi possível enxergar - e, principalmente, ouvir - no palco aquele que foi (e é) um dos quatro grandes guitarristas históricos (os outros são Jimi Hendrix, Jimmy Page e Pete Towshend) do rock. Um desses momentos foi o blues de transição entre Hoochie Coochie Man (clássico de Willie Dixon), e Cocaíne (clássico do próprio Clapton, do disco Slowhand). Enfiado ali entre dois clássicos, ele presenteou o público com o rascante blues Stormy Monday, de T-Bone Walker, algo fora do planejado, do set list afixado na parede, mas inteiramente dentro da linha evolutiva do trabalho de Clapton. Ele foi iniciado no blues e no swing jazz pelo tio, Adrian, que gostava de ouvir Stan Kenton e Woody Herman. Adrian foi como um pai para Clapton, que nunca conheceu o pai biológico. Reptile, seu mais recente álbum, é dedicado, em parte, ao tio que ele perdeu recentemente. Daí, o show torna-se uma espécie de celebração pessoal do passado, presente e futuro de Clapton, um memorial em nome das perdas e das possibilidades. Ele canta o "pai" (My Father?s Eye), o filho que morreu tragicamente (Tears in Heaven) e a mulher amada em diversos momentos. A mulher inapreensível está em She?s Gone, do disco Pilgrim, de 1998, que teve o solo de guitarra mais exuberante. Outro capítulo feminino do seu passado é revisto em duas canções, Bell Bottom Blues e Layla. Ambas têm relação com seu amor por Pattie Boyd, ex-mulher do beatle George Harrison, com quem Clapton casou em 1979. Ao longo do seu show, Clapton foi um pouco de tudo. Foi jazz fusion (na abertura, com Reptile, que é uma leitura enviesada da bossa), rock (She?s Gone), blues (Hoochie Coochie), pop rock (Wonderful Tonigh), pinkfloydiano (River of Tears), vaudeville (Somewhere over the Rainbow). O que incomodou um pouco foi a atitude um tanto distanciada de Clapton, que sugeria tédio, indiferença. Era preciso um certo esforço espiritual para buscar intensidade nos solos de guitarra, nos fraseados, nas palavras. Ele agora usa roupas de sua própria grife (Red Wing - Clapton Classics). Não é brincadeira: você pode comprar a botinha e a jaqueta e as roupas com a Red Wing Shoe Company (vendas online www.redwing-europe.com). A botinha é sempre a mesma, o tom dos agradecimentos, a ordem de apresentação da banda - que, por sinal, é quase cartesiana de tão eficiente. Claro, não há problema nisso. Clapton tem todo o direito de ganhar a vida. A estrutura de uma turnê mundial é enorme e dispendiosa e é preciso pagar os músicos, o motorista de caminhão, o iluminador, o tour manager, o técnico de amplificação. O problema é que a platéia também era histórica, gente que passou a mística de geração a geração ("Filho, um dia vou levá-lo para ver Clapton, e você vai ver o que é música, o que é emoção!"). Tiveram que apresentar aos filhos um senhor apressado, com as fagulhas de genialidade quase recobertas por cinzas. Clapton sai de cena com a missão cumprida. Tudo que quer agora é dedicar menos tempo ao mito e mais tempo ao homem. Vai para o seu casarão em Surrey, Inglaterra, olhar a grama crescer e brincar com a filha, Julie Rose (nome de sua avô), de quatro meses, filha dele e da artista gráfica Melia, de Ohio.

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