Chivas: saldo mais que positivo

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Por Agencia Estado
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Antes de tocar Don´t Explain, sucesso histórico na voz de Billie Holiday, a violinista Regina Carter ofereceu a canção ao percussionista Tito Puente, morto na semana passada. Era a reverência de uma jovem instrumentista que um dia largou os caminhos da música erudita para render-se ao sangue e vibração da música latina. Não à toa, a percussionista da banda de Regina Carter é a cubana Mayra Casales. O pequeno intróito de Regina Carter na primeira noite do Chivas Jazz Festival ilustrou a grande questão que se ofereceria a seguir: o que é jazz? Seria a mistura vibrante, às vezes caribenha e cajun, erudita e desregrada de miss Carter? Ou o rigor improvisacional que o saxofonista David Murray ofereceu a seguir, apoiado na tradição free jazz do piano de Dave Burrel? Regina Carter tocou até Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu, incluindo fraseados e citações no meio de suas versões. Murray mostrou cinco canções próprias, exuberantes, delicadas, com uma única reverência ao passado: tocou Let´s Cool One, de Thelonious Monk - por sinal, o mais tocado entre os compositores de jazz no festival. O Chivas possibilitou a comparação entre veteranos e os emergentes do jazz. Na verdade, após a reação à farra que astros do free jazz como Ornette Coleman promoveram nos anos 60, surgiram os arautos de uma nova tradição, como Wynton Marsalis, Brandford Marsalis e James Carter. Mas também essa reação, um tanto quanto acadêmica e sisuda, já começa a enfrentar as dissidências. O clarinetista Don Byron e vibrafonista Stefon Harris, que se apresentaram na sexta (02) e ontem (03), respectivamente, representam esse espírito da nova ordem jazzística. Experimentais, mas também celebratórios. Eruditos, mas sem exibicionismos. Byron, antiestrela por excelência, misturou-se ao público até alguns minutos antes de começar seu espetáculo, com um boné virado para trás e uma jaqueta onde se lia "The Negro Leagues." Mas mostrou que não é só um militante das causas políticas. É um militante da boa música, com seu vibrato peculiar e que já o coloca num nicho muito especial dentro da história do clarinete no jazz. Stefon Harris foi a surpresa mais grata da jornada. É um garotão ainda, aos 27 anos, e toca um instrumento de pouco reconhecimento. O velho Milt Jackson é quem sabe disso. Mas Harris tem personalidade, reinvindica com classe e vitalidade o centro do palco. Mas tem muito emergente incorrendo nos mesmos erros de seus predecessores. O guitarrista Charlie Hunter é um deles. Apesar de figura extremamente simpática, arriscando-se num português bem razoável, ele toca sua guitarra de oito cordas num estilo pré-Pat Metheny. De vez em quando, para piorar, ele se investe de um scat vocal constrangedor. Trata-se de uma fusion atualizada com displicência, pouco ousada, um tanto quanto populista até. O show da pianista Geri Allen não soçobrou por causa da falta de talento, mas talvez pelo excesso de vontade. Ela convidou o veterano cantor Andy Bey - um dos últimos grandes crooners de jazz - e mais o percussionista franco-caribenho Mino Cinelu para participar do seu show. O resultado foi o soterramento das sutilezas, já que a percussão de Cinelu encobria as baladas de Bey e os scats de Bey não iam de encontro à imensa erudição de Geri, uma das melhores pianistas da nova geração. De qualquer modo, seria interessante promover o retorno de Andy Bey em alguma outra circunstância. O cantor, de 51 anos, que começou cantando no famoso Apollo Theater aos 18 anos, tem história e seu estilo - um pouco difícil para a platéia brasileira - é único. No meio de tudo isso, houve o ritual oferecido pela dupla Steve Lacy (saxofone) e Mal Waldron (piano). "Nós acabamos de tocar Monk´s Dream, uma canção de Thelonious Monk dos anos 50", disse Steve Lacy, após a introdução. "Uma canção do século passado", brincou o saxofonista, que guarda incrível semelhança com Frank Sinatra. O "século passado" foi o ponto alto do festival, um encontro digno das grandes jam sessions do jazz. O veterano Maldron, fumando compulsivamente cigarros mentolados More, com um paletó meio amassado e o jeito cool, desleixado, deu um espetáculo à parte. É um dos grandes do instrumento e merece ser lembrado ao lado de gênios como McCoy Tyner e Monk, que ele admira. Maldron compôs peças admiráveis do piano, como Snake Out que tocou com a conivência cúmplice de Lacy - parece que o veterano saxofonista veio apenas como mestre de cerimônia para o amigo. Snake Out, tocada de maneira percussiva, monkiana por Maldron, é uma composição difícil, cheia de sutilezas e longuíssima. Ele a gravou em seu disco Live at Sweet Basil (Evidence, 1987). O que sobra da longa jornada do Chivas Jazz Festival é um saldo mais que positivo. O festival alinhou diversas tendências e instrumentos, trazendo influenciadores e influenciados. Arriscou e acertou, encontrando seu espaço na agenda paulistana.

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