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Chivas: Abdullah Ibrahim dissolve limites do jazz

Com uma performance histórica, pianista abriu a edição 2002 do Chivas Jazz Festival rompendo as tradicionais fronteiras entre o clássico, o jazz e a world music

Por Agencia Estado
Atualização:

A abertura do Chivas Jazz Festival, no Directv Music Hall, na noite de ontem, registrou uma das mais impressionantes performances de um pianista em qualquer época em São Paulo. Foi o concerto do sul-africano Abdullah Ibrahim e seu trio (o pianista e mais Beldon Bullock no baixo e George Gray na bateria). Ibrahim, que era Adolphus Brand antes de se converter ao islamismo (ou Dollar Brand para os íntimos), concebeu sua apresentação como um concerto de música de câmara, com uma abordagem imagética da música. Era como se fizesse a trilha sonora de um filme, ao vivo - ele é autor da trilha de Chocolate, de Claire Denis. Um estilo que constrói a música, depois a fragmenta e, por fim, a reintegra, faz de Ibrahim um dos maiores do seu instrumento. Seu estilo tem muito a ver com o de McCoy Tyner (por sinal, outro pianista convertido ao islamismo) e suas composições retomam a linha de Duke Ellington, sua maior influência. Ibrahim tocou peças que requeriam extrema concentração - tanto dos seus executores quanto da platéia. Por conta disso, irritou-se com o barulho das máquinas fotográficas e pediu para um fotógrafo afastar-se. "Excuse-me", disse apenas, com um olhar severo. Com uma combinação de acordes pesados e linhas melódicas flutuantes, delicadas, sua música não tem uma fronteira definida, ela não termina senão quando ele quer que ela termine. Baixo e bateria são livres para improvisar, mas não para concorrer com o piano, em solos intermináveis. Eles apenas emolduram o som distintivo de Ibrahim. O interessante de seu trabalho é que ele parece dissolver a delimitação entre o que consideramos clássico, jazz, world music ou mantras antropológicos. Ele não carrega a tradição africana da celebração, mas aquela da gênese rítmica - que não é o tambor tribal. Sua música se investe de uma dimensão orquestral, mas toda ela concentrada no piano. Uma música em que a melodia é o mote supremo, a repetição é um dado cultural e o resultado é quase místico, envolvente, misterioso. Ao final, suado e sem ter feito uma pausa sequer e sem ter dirigido uma palavra ao público, foi aplaudido de pé, com um sorriso compreensivo em direção aos "garotos" de sua banda. O jovem músico israelense Avishai Cohen abriu sua apresentação com um tema clubístico, Yagla, que tinha muito de clube, uma pegada de metais e baixo que não faria feio numa pista de dança clubber. Cohen tocou piano e depois, no final, atacou um baixo elétrico. No baixo acústico, Yagil Baras marcava tudo. "O coração da coisa toda", segundo ele explicou, apontando para o baixista. Essa também é a convicção dos gêneros modernos de tecno, como o drum´n´bass, por exemplo. Depois, Cohen mostrou certo apreço pelo latin jazz em sua peça seguinte, Short Story. Nervoso, irrequieto, martelando o piano como se fosse uma mistura de Brad Mehldau (que gravou com ele o disco Adama, de 1997) e Oscar Peterson, Avishai Cohen é uma grata surpresa, um menino de futuro. Pena que a noite já fora tomada por um monstro: Abdullah Ibrahim.

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